Comissão da Verdade peitará a mídia?
Altamiro Borges
O governo decidiu prorrogar por mais sete meses
os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, que agora terá até 16 de
dezembro de 2014 para apresentar seu relatório final. O novo prazo,
definido em Medida Provisória assinada pela presidente Dilma Rousseff,
foi publicado nesta semana no Diário Oficial da União. O objetivo
é garantir mais tempo para que os integrantes do colegiado consigam
detalhar todas as violações aos direitos humanos cometidas durante a ditadura
militar (1964-1985). Será que agora os megaempresários que financiaram as
torturas serão convocados para depor? E os barões da mídia, que criaram o clima
para o golpe militar e apoiaram a sanguinária ditadura?
A Comissão Nacional da Verdade foi empossada
em maio de 2012 pela presidenta Dilma, com prazo de dois anos para
concluir os seus trabalhos. Neste período, ela promoveu várias audiências e
coletou importantes documentos, que comprovam inúmeros crimes da ditadura -
como "mortes, ocultação de cadáveres e tortura". Também foram
criadas mais de cem comissões em todo o país com o intento de apurar os
atentados aos direitos humanos nos municípios e estados. Agora, com a
prorrogação do prazo, será possível aprofundar e sistematizar as informações
coletadas.
Para Pedro Dallari, coordenador da comissão,
a decisão do governo dá mais folego para o trabalho e é muito positiva.
"Estávamos preparando o nosso relatório e a novidade nos dará um tempo
maior para aprofundarmos algumas investigações... Assim como aconteceu em
outros países, o trabalho final da comissão será a base para a continuidade das
investigações nos próximos anos. O trabalho de tentar esclarecer o que
aconteceu no passado não se esgota na comissão".
De fato, ainda há muito o que apurar - como o
objetivo de se evitar a repetição dos crimes praticados pela ditadura. Não
basta saber quem foram os torturadores e quais os métodos bárbaros que usaram -
nem saber quantos foram mortos e estão desaparecidos. É preciso saber quais
foram as empresas, inclusive as multinacionais, que financiaram os órgãos
de repressão, deram respaldo à ditadura e acumularam fortunas neste período
sombrio. É preciso saber qual foi o papel da mídia no apoio ao golpe militar e
na cobertura dos assassinatos e torturas de patriotas brasileiros.
Muita gente graúda ainda deve explicações
ao Brasil, como aponta recente artigo do jurista Marcelo Semer, no
blog "Sem Juízo", que reproduzo abaixo:
*****
Imprensa também é devedora de verdade sobre
Jango
“Mídia contribuiu muito para difundir tese
falaciosa de que Jango não tinha apoio popular”
Os restos mortais do ex-presidente João Goulart
foram exumados por determinação da Comissão da Verdade para apurar suspeitas de
homicídio.
A presidenta Dilma Roussef realizou uma cerimônia
para recebê-los com honra de chefe de Estado em Brasília.
O Congresso simbolicamente anulou a sessão na
qual, de forma canhestra, a presidência havia sido declarada vaga, como uma
forma hipócrita de disfarçar o golpe militar que o arrancara do poder.
Mas nem todas as verdades ainda foram repostas a
Jango.
O historiador Luis Antonio Dias revelou, em
entrevista recente à revista Carta Capital, que o Ibope não divulgou, à época,
pesquisa realizada em que mostra amplo apoio popular a Jango em 1964 e
perspectivas extremamente positivas à sua reeleição no ano seguinte. As
pesquisas foram doadas pelo instituto, em 2003, para o Arquivo Edgard
Leuenroth, da Unicamp, mas a maior parte dos dados permanece desconhecida.
O curioso, e relevante, nesse caso, é que o
“apoio popular” foi justamente um dos álibis construídos pela imprensa para
justificar a legitimidade do golpe.
O editorial do jornal O Estado de S. Paulo de 12
de março de 1964, por exemplo, anunciava peremptoriamente, o “aprofundamento do
divórcio entre o governo da República e a opinião pública nacional”.
A Folha de S. Paulo já admitiu por mais de uma
vez o apoio dado ao golpe militar e, recentemente, de uma forma ainda tímida,
foi a vez das Organizações Globo de promover um contraditório ‘meaculpa’ pelo
apoio ao regime –embora baseando-se em editorial que o elogiava até seus
últimos dias, em 1984.
O certo é que, como afirma Dias, a “mídia
contribuiu muito para difundir essa tese falaciosa de que Jango não tinha apoio
popular” –e que continua difundindo, fazendo referência explícita a um dos
livros de maior pesquisa sobre o tema, a encargo do jornalista Élio Gaspari.
A ligação entre essa demonstração de fraqueza e a
realização do golpe são evidentes para o historiador:
“As reportagens e os editoriais enfatizavam o
isolamento de Goulart e a oposição da população às reformas de base,
consideradas demagógicas. À exceção do Última Hora de Samuel Wainer, todos os
jornais de expressão nacional clamavam por uma intervenção das Forças Armadas,
sempre em nome da opinião pública. É interessante, pois os militares, em seus
livros de memória, usam esse apoio como justificativa: eles só agiram porque a
população pediu. As pesquisas do Ibope provam o contrário”.
O abuso inapropriado da titularidade da “opinião
pública” pode perverter importantes decisões políticas, principalmente quando
se sabe que muitas vezes se restringem a opiniões de classe média urbana
fortemente sensibilizada por discursos propositadamente catastrofistas.
Os dados reunidos por Dias apontam que, em 1964,
55% dos paulistanos achavam relevantes para o país as reformas de base e o
apoio à reforma agrária passava de 70% em certas capitais. Apenas 27% avaliavam
o governo como ruim ou péssimo na capital paulista –percentual extremamente
inflado pelas manchetes da grande mídia.
Os trabalhos da Comissão da Verdade ainda
engatinham.
Judicialmente, o panorama é incipiente na
avaliação dos crimes contra a humanidade, embora já tenha havido alterações de
registro de falsos suicídios, condenação cível por tortura e denúncias
recebidas em casos de sequestros.
Falta ainda que a própria imprensa se debruce sobre
o papel nos anos de chumbo, para honrar a utilidade pública e responsabilidade
social que permeiam seu discurso –e que suportam, por exemplo, não apenas a
firme e correta vedação à censura, como o benefício das imunidades tributárias
no texto constitucional.
Afinal, o maior risco que envolve o encobrimento
da verdade é justamente a repetição da mentira.
*****
Fonte: Blog do Miro
(www.altamiroborges.blogspot.com.br)
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