domingo, 29 de dezembro de 2013

Direito e Cidadania

De berço constitucional, a assistência gratuita aos necessitados não é garantida na prática

A Constituição Federal de 5 de outubro de 1988 foi romanticamente batizada por Ulisses Guimarães, presidente da Assembleia Nacional Constituinte que a elaborou, de "Constituição Cidadã", numa clara alusão aos muitos direitos individuais e coletivos previstos no Texto Maior.

No entanto, na prática, a Constituição da República continua sendo, em muitos aspectos, apenas um texto belíssimo para estudo. A realidade aponta para o desatendimento de diversos preceitos abrigados na Lei Fundamental do País.

Um dos pontos de contumaz desobediência à Constituição Federal está na assistência gratuita que deveria ser prestada aos economicamente necessitados.

De fato, o artigo 5º, inciso LXXIV, da Constituição brasileira, assegura que "o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos".

E, mais adiante, o artigo 134, "caput", do mesmo Texto Constitucional, determina: "A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV".

Por recepção da Constituição Federal, aplica-se à questão, como norma complementar ao Texto Constitucional, a Lei Federal nº 1.060, de 5 de fevereiro de 1950.

Na prática, porém, os dois dispositivos constitucionais e a Lei Federal nº 1.060/1950 são preceitos sem muita eficácia.

É que, na imensa maioria dos Municípios brasileiros, principalmente nos que são sedes de Comarcas, Varas do Trabalho e/ou Seções Judiciárias Federais, não há defensores públicos para o atendimento àqueles que não têm suficiência de recursos para o pagamento de advogados.

No interior do Rio Grande do Norte, a situação é absolutamente caótica, pois apenas em Natal (capital) e em alguns poucos Municípios do Estado (como Mossoró e Caicó) existem defensores públicos, mas, mesmo assim, em número insuficiente ao atendimento da demanda.

Em Comarcas como Patu, Almino Afonso, Janduís, Campo Grande, Upanema, Caraúbas, Governador Dix-Sept Rosado, Baraúna, Umarizal, Martins, Portalegre, Angicos, dentre tantas outras, não há um único defensor para fazer a defesa dos necessitados.

Os advogados que militam nessas Comarcas acabam sendo nomeados pelos respectivos juízes de Direito para que atuem na defesa dos cidadãos que alegam não ter recursos financeiros para o pagamento de advogados.

O Ministério Público, que tem legitimidade extraordinária prevista em lei para atuar ao menos em matéria de alimentos (ações de alimentos, execuções de alimentos e ações revisionais de alimentos), até pouco tempo fazia os atendimentos de pessoas pobres nas respectivas Promotorias de Justiça e patrocinava as ações correspondentes.

No entanto, de uns tempos para cá, o Ministério Público deixou de realizar tais atendimentos e de patrocinar qualquer ação em matéria de alimentos.

Tudo isso piorou sobremaneira a situação nas Comarcas onde não há defensores públicos.

A realidade mostra, portanto, que a Constituição Federal, ideologicamente muito bela, continua sendo um conjunto de normas longe de ter aplicação plena no dia a dia do povo brasileiro.

Opinião

Comissão da Verdade peitará a mídia?

Altamiro Borges

O governo decidiu prorrogar por mais sete meses os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, que agora terá até 16 de dezembro de 2014 para apresentar seu relatório final. O novo prazo, definido em Medida Provisória assinada pela presidente Dilma Rousseff, foi publicado nesta semana no Diário Oficial da União. O objetivo é garantir mais tempo para que os integrantes do colegiado consigam detalhar todas as violações aos direitos humanos cometidas durante a ditadura militar (1964-1985). Será que agora os megaempresários que financiaram as torturas serão convocados para depor? E os barões da mídia, que criaram o clima para o golpe militar e apoiaram a sanguinária ditadura?

A Comissão Nacional da Verdade foi empossada em maio de 2012 pela presidenta Dilma, com prazo de dois anos para concluir os seus trabalhos. Neste período, ela promoveu várias audiências e coletou importantes documentos, que comprovam inúmeros crimes da ditadura - como "mortes, ocultação de cadáveres e tortura". Também foram criadas mais de cem comissões em todo o país com o intento de apurar os atentados aos direitos humanos nos municípios e estados. Agora, com a prorrogação do prazo, será possível aprofundar e sistematizar as informações coletadas.

Para Pedro Dallari, coordenador da comissão, a decisão do governo dá mais folego para o trabalho e é muito positiva. "Estávamos preparando o nosso relatório e a novidade nos dará um tempo maior para aprofundarmos algumas investigações... Assim como aconteceu em outros países, o trabalho final da comissão será a base para a continuidade das investigações nos próximos anos. O trabalho de tentar esclarecer o que aconteceu no passado não se esgota na comissão". 

De fato, ainda há muito o que apurar - como o objetivo de se evitar a repetição dos crimes praticados pela ditadura. Não basta saber quem foram os torturadores e quais os métodos bárbaros que usaram - nem saber quantos foram mortos e estão desaparecidos. É preciso saber quais foram as empresas, inclusive as multinacionais, que financiaram os órgãos de repressão, deram respaldo à ditadura e acumularam fortunas neste período sombrio. É preciso saber qual foi o papel da mídia no apoio ao golpe militar e na cobertura dos assassinatos e torturas de patriotas brasileiros. 

Muita gente graúda ainda deve explicações ao Brasil, como aponta recente artigo do jurista Marcelo Semer, no blog "Sem Juízo", que reproduzo abaixo:

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Imprensa também é devedora de verdade sobre Jango 

“Mídia contribuiu muito para difundir tese falaciosa de que Jango não tinha apoio popular”

Os restos mortais do ex-presidente João Goulart foram exumados por determinação da Comissão da Verdade para apurar suspeitas de homicídio.

A presidenta Dilma Roussef realizou uma cerimônia para recebê-los com honra de chefe de Estado em Brasília.

O Congresso simbolicamente anulou a sessão na qual, de forma canhestra, a presidência havia sido declarada vaga, como uma forma hipócrita de disfarçar o golpe militar que o arrancara do poder.

Mas nem todas as verdades ainda foram repostas a Jango.

O historiador Luis Antonio Dias revelou, em entrevista recente à revista Carta Capital, que o Ibope não divulgou, à época, pesquisa realizada em que mostra amplo apoio popular a Jango em 1964 e perspectivas extremamente positivas à sua reeleição no ano seguinte. As pesquisas foram doadas pelo instituto, em 2003, para o Arquivo Edgard Leuenroth, da Unicamp, mas a maior parte dos dados permanece desconhecida.

O curioso, e relevante, nesse caso, é que o “apoio popular” foi justamente um dos álibis construídos pela imprensa para justificar a legitimidade do golpe. 

O editorial do jornal O Estado de S. Paulo de 12 de março de 1964, por exemplo, anunciava peremptoriamente, o “aprofundamento do divórcio entre o governo da República e a opinião pública nacional”.

A Folha de S. Paulo já admitiu por mais de uma vez o apoio dado ao golpe militar e, recentemente, de uma forma ainda tímida, foi a vez das Organizações Globo de promover um contraditório ‘meaculpa’ pelo apoio ao regime –embora baseando-se em editorial que o elogiava até seus últimos dias, em 1984.

O certo é que, como afirma Dias, a “mídia contribuiu muito para difundir essa tese falaciosa de que Jango não tinha apoio popular” –e que continua difundindo, fazendo referência explícita a um dos livros de maior pesquisa sobre o tema, a encargo do jornalista Élio Gaspari.

A ligação entre essa demonstração de fraqueza e a realização do golpe são evidentes para o historiador: 

“As reportagens e os editoriais enfatizavam o isolamento de Goulart e a oposição da população às reformas de base, consideradas demagógicas. À exceção do Última Hora de Samuel Wainer, todos os jornais de expressão nacional clamavam por uma intervenção das Forças Armadas, sempre em nome da opinião pública. É interessante, pois os militares, em seus livros de memória, usam esse apoio como justificativa: eles só agiram porque a população pediu. As pesquisas do Ibope provam o contrário”.

O abuso inapropriado da titularidade da “opinião pública” pode perverter importantes decisões políticas, principalmente quando se sabe que muitas vezes se restringem a opiniões de classe média urbana fortemente sensibilizada por discursos propositadamente catastrofistas.

Os dados reunidos por Dias apontam que, em 1964, 55% dos paulistanos achavam relevantes para o país as reformas de base e o apoio à reforma agrária passava de 70% em certas capitais. Apenas 27% avaliavam o governo como ruim ou péssimo na capital paulista –percentual extremamente inflado pelas manchetes da grande mídia.

Os trabalhos da Comissão da Verdade ainda engatinham. 

Judicialmente, o panorama é incipiente na avaliação dos crimes contra a humanidade, embora já tenha havido alterações de registro de falsos suicídios, condenação cível por tortura e denúncias recebidas em casos de sequestros.

Falta ainda que a própria imprensa se debruce sobre o papel nos anos de chumbo, para honrar a utilidade pública e responsabilidade social que permeiam seu discurso –e que suportam, por exemplo, não apenas a firme e correta vedação à censura, como o benefício das imunidades tributárias no texto constitucional.

Afinal, o maior risco que envolve o encobrimento da verdade é justamente a repetição da mentira.

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Fonte: Blog do Miro (www.altamiroborges.blogspot.com.br)