O Natal, a Igreja e a opção preferencial pelos pobres
Chegou dezembro, e
novamente uma parcela significativa da humanidade se dedica a festejar o
nascimento de Jesus Cristo, o Filho prometido por Deus, o verbo que, segundo os
Livros bíblicos de Gênesis e João (1, 1-18), já existia desde a criação do
mundo, mas somente milênios adiante se fez carne e veio habitar entre nós,
assumindo uma composição humana, sem perder a condição de Deus Filho. Muitas denominações
cristãs celebram a data. Inegavelmente, a Igreja Católica ainda reúne a maior
quantidade de fiéis cristãos que tornam esse período um momento de maior
celebração em torno do nascimento de Emanuel.
A Igreja Católica
e Apostólica Romana, a maior das Igrejas a congregar fiéis cristãos ao redor do
mundo, viveu fases e períodos históricos diferentes, com altos e baixos ao
longo da sua rica história. Dos erros da Idade Média, passando pelo
enfrentamento da Reforma Protestante ocorrida em fins do período medieval
(século XVI), até os dias atuais, a Madre Igreja Católica experimentou
calmarias seculares e também tempestades que mudaram o rumo da História. Mas ela
sobreviveu a tudo, e continua a reunir o maior número de cristãos, que
continuam a ser maioria entre os adeptos de religiões pelo mundo.
Fazendo-se um
recorte mais curto da História, vimos que, a partir dos anos 1960, surgiu na
América Latina, dentro da Igreja Católica, após o Concílio Vaticano II, a
Teologia da Libertação, uma corrente cristã-católica que alia a fé ao combate das
injustiças sociais, econômicas e políticas que oprimem a camada mais pobre da
população.
Adotando o lema de
“opção preferencial pelos pobres”, a Teologia da Libertação defende que é
preciso ocorrer a libertação das estruturas de pecado que geram miséria e
opressão. Em suma, é preciso lutar pela libertação dos oprimidos.
A Teologia da Libertação
foi defendida e difundida por nomes de peso na América Latina, como Gustavo
Gutierrez, Leonardo Boff e muitos outros. Com o método “ver, julgar, agir”,
inspirou a formação das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) da Igreja Católica
e, mais recentemente, encontrou forte eco nas palavras do Papa Francisco (in
memoriam), que por diversas vezes defendeu que a Igreja deve fazer a opção
preferencial pelos pobres.
No entanto, a
Teologia da Libertação, desde o seu nascimento, foi fortemente combatida por
setores mais conservadores da própria Igreja Católica, inclusive porque se
dizia – dentre outros argumentos – que a doutrina tinha elementos conceituais
dos ensinamentos de Karl Marx e Friedrich Engels, economistas que criaram a
base teórica do Comunismo no século XIX.
Aproveitando-se da
crítica que se fazia à Teologia da Libertação, denominações
cristãs-pentecostais difundiram com maior ênfase a Teologia da Prosperidade,
que se apega com ênfase – de forma equivocada, que se diga – ao Livro de
Malaquias, do Velho Testamento bíblico, para, a grosso modo, prometer
prosperidade e aquisição de bens materiais de forma fácil aos fiéis (o profeta
Malaquias não pregou desta forma!). Doutrinariamente, em linguagem mais
rebuscada, a Teoria da Prosperidade defende que a abundância material é o
desejo de Deus para seus fiéis.
Todavia, na
prática, a prosperidade material verificada é apenas a de alguns “líderes
religiosos” de parte do segmento protestante ou evangélico, que esbanjam uma
vida de luxo e de muito poder econômico, em detrimento do sofrimento diário do
imenso rebanho cristão que “lideram”, rebanho este que continua a sofrer as
atribulações diárias decorrentes de um sistema em que se vende barato a força
do trabalho para o enriquecimento de uns poucos.
Aliás, em
parêntese, diga-se que o comportamento de algumas lideranças autodenominadas
evangélicas destoa diametralmente da conduta humana e cristã de Martin Luther
King Jr., que foi pastor da Igreja Batista e um ativista incansável, que lutou
bravamente pelos direitos humanos e civis da comunidade negra nos Estados
Unidos da América. Viveu em função da defesa dos direitos dos irmãos negros,
até que foi assassinado em 04 de abril de 1968.
Pois bem, voltando-se
à Teologia da Libertação, diga-se que, diminuída em sua importância e
praticamente erradicada, na prática, no seio da Igreja Católica, a referida Teologia
deu lugar à pregação da salvação da alma pura e simples e aos ritos religiosos
seculares, sem o olhar voltado como outrora
para a gigantesca problemática social, composta de muitos oprimidos; de
uma parcela da sociedade marginalizada pelo enorme fosso que cada vez mais
separa ricos de pobres; e pelas mazelas decorrentes de um sistema que funciona
para agradar ao “mercado”, denominação simplista de uma engrenagem maior, em
que o lucro exacerbado e o aumento da riqueza de uns poucos justificam o
engessamento de qualquer voz que se faça contrária a isto na política, nos
movimentos sociais e, infelizmente, também nas igrejas.
Entretanto, mesmo
sem a visibilidade de antes, a Teologia da Libertação continuou a inspirar o
trabalho de muitos dentro do clero. O Papa Francisco foi um deles. Não foram
poucas as oportunidades em que ele, abertamente, defendeu que a Igreja deve
fazer a opção pelos pobres. O Papa Leão XIV, que, embora seja nascido nos
Estados Unidos da América, teve destacada atuação no Peru nas décadas de
oitenta e noventa do século passado, também já deixou ver que tem pensamento
similar ao seu antecessor. Na sua primeira Missa de Natal, em 2025, destacou
que “negar ajuda aos pobres é rejeitar a Deus”.
Nesse viés, e até
antes dos dois últimos Santos Padres, o sacerdote Hélder Pessoa Câmara, ou Dom
Hélder Câmara, teve uma vida dedicada à defesa de quem mais necessitava.
Durante a ditadura militar, que prendeu, agrediu, matou e desapareceu com
muitos brasileiros, o arcebispo emérito de Olinda e Recife defendeu os direitos
humanos em pleno regime militar. Ao longo da sua vida sacerdotal, pregou que a
Igreja fosse voltada para os pobres.
Nascido em
Fortaleza, no Ceará, em 1909, Dom Hélder Câmara, que foi um dos fundadores da
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, pôs em prática os verdadeiros
ensinamentos cristãos. Deixou frases emblemáticas, dentre elas a de que:
“Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo; quando pergunto por que eles
são pobres, chamam-me de comunista”. Em 1999, com a sua morte, ocorrida em
Pernambuco, o Brasil e a Igreja perderam um grande defensor do ideal da “opção
preferencial pelos pobres”.
Líderes religiosos
como Dom Hélder certamente inspiraram muitos outros cristãos a aliarem a fé à
defesa dos pobres e oprimidos. Brasil afora, muitos perderam suas vidas,
justamente porque se opuseram a injustiças sociais, políticas e econômicas; ou
porque fizeram opção manifesta e clara pelos pobres.
No Brasil de agora,
um sacerdote tem chamado a atenção de todos por sua vasta, eficaz e
eminentemente cristã atuação em favor dos pobres e marginalizados. O padre Júlio
Renato Lancellotti diariamente sai às ruas para abraçar, acolher e alimentar
moradores de rua. Leva-lhes alimento para a alma e um pouco de conforto
material. É o pároco da Paróquia de São Miguel Arcanjo, do Bairro da Mooca, na
cidade de São Paulo, e costuma celebrar as missas na Capela da Universidade São
Judas Tadeu.
O padre Júlio
Lancellotti é o vigário episcopal da Pastoral do Povo da Rua da Arquidiocese de
São Paulo, e tem feito da sua atuação diária um exercício contundente da
prática cristã. Na sua Paróquia, acolhe, abraça, aconselha alimenta e lida
diretamente com as pessoas que mais precisam desse acolhimento e dessa atenção.
São moradores de rua, que perderam tudo, mas certamente, em razão do agir do
padre Júlio e da sua voluntariosa equipe, não perderam de tudo a esperança em
dias melhores, mais justos, de menos sofrimento.
Como todos os
outros que agiram semelhantemente, o padre Júlio Lancellotti encontra
resistências ao seu trabalho. Políticos paulistanos pensaram em criar normas
jurídicas para punir quem alimenta moradores de rua, numa clara tentativa de
impedir o trabalho do padre Júlio Lancellotti; a Câmara Municipal de São Paulo
cogitou instaurar uma Comissão Especial de Inquérito para investigar a atuação
do sacerdote; pessoas de má índole diariamente xingam e ofendem o sacerdote nas
redes sociais virtuais, e por aí segue o festival de horrores de quem se opõe a
uma atuação sacerdotal voltada para os pobres.
Enquanto o padre
Júlio atua nas periferias e promove um enorme bem social e espiritual para quem
mais necessita, nos púlpitos de algumas igrejas evangélicas o que se vê é o oferecimento
de vantagens materiais de fácil aquisição (que não vêm, exceto para alguns), a
exploração de fiéis através de doações que às vezes até lhe fazem falta para as
necessidades mais básicas (em detrimento do enriquecimento exacerbado de
algumas “lideranças”), a defesa de um País armado (quando se deveria falar de
paz) e a total repressão a qualquer ideia de se levar ajuda a quem mais precisa
(chamam a isto de “comunismo”).
Também na
contramão da opção preferencial pelos pobres, nos Estados de Minas Gerais e
Santa Catarina alguns prefeitos e até um pastor evangélico foram filmados
expulsando moradores de rua egressos de outros Municípios e de outros Estados.
E muitos deles, que cometem esta atrocidade, se autointitulam “cristãos” e
“cidadãos de bem”.
Enquanto isso,
seguem a censura e as ameaças ao trabalho verdadeiramente cristão do padre
Júlio Lancellotti, como surgirão os mesmos empecilhos a qualquer líder
religioso que ouse atuar como ele. O capital que cria o produto das
desigualdades entre os homens também é despido de qualquer sentimento de
humanismo para lidar com seus marginalizados.
No entanto, é
preciso continuar a se combater tantas desigualdades sociais e econômicas.
Assim fazendo, estar-se-á seguindo verdadeiramente os passos de Jesus Cristo, mas
também se estará atraindo contra si a fúria daqueles que compõem a camada
social dos privilegiados. No entanto, isto não deve servir de desestímulo,
afinal o próprio Jesus Cristo anunciou que os que defendessem o seu nome seriam
perseguidos. Exemplo disso foi Estêvão, que ainda na Igreja primitiva defendeu
o nome de Jesus Cristo e morreu por apedrejamento, sob a acusação de blasfêmia.
Tornou-se o primeiro mártir da Igreja Católica, sendo posteriormente
reconhecido como Santo, justamente por sua vida dedicada à prática cristã.
Em tempos de
aceleramento da destruição da natureza, faz-se imperativo adicionar a esta luta
em favor dos oprimidos a defesa intransigente da conservação do meio ambiente,
porque a sua destruição também é motivo de aumento das desigualdades sociais, e
porque também o espaço em que se vive deve ser compreendido pelos cristãos como
presente de Deus para eles.
Esses apontamentos
vieram à lembrança justamente em razão do Natal, quando os cristãos de todo o
mundo (com pequenas exceções) celebram o nascimento de Jesus Cristo, o Filho
prometido por Deus ao seu povo, o redentor de todos os pecados, o Emanuel, o
descendente da Casa de Davi.
Talvez uma enorme
parcela dos que celebram o nascimento de Jesus ainda não tenha compreendido que
o Papai Noel não é a figura principal da festa, nem que o mais importante não
são as confraternizações e as trocas de presentes próprias do período.
Possivelmente nem se lembrem esses fieis que o fato de Jesus nascer nos
arredores de Belém, numa manjedoura, dentro de uma estribaria, próximo aos
animais, tenha sido uma manifesta opção pelos pobres da parte de Deus, que fez
Seu Filho chegar ao mundo, na forma humana, longe dos palácios reais e através
da singela Maria, para ser criado pelo carpinteiro José, na então
insignificante Nazaré da Galiléia, longe da elite econômica e religiosa do povo
judeu, que se concentrava principalmente em Jerusalém e Tiberíades. Tudo isso
pode ser compreendido como “opção preferencial pelos pobres”.
Por sinal, essa
opção preferencial pelos pobres foi uma marca constante na vida de Jesus, que,
longe das elites judaicas, resolveu pregar a boa nova na periferia, onde mais
anunciou o Reino de Deus, e onde operou milagres, curou doentes, alimentou
famintos e buscou as ovelhas perdidas do rebanho. A vida de Jesus Cristo faz
ver que Ele fez clara opção pelos pobres.
Depois de celebrar
o nascimento de Jesus Cristo, a Igreja festejou a Sagrada Família e as
celebrações seguem até o Festa de Santos Reis, já em janeiro, em homenagem aos
Reis Magos que visitaram o Menino Jesus ainda na cidade de Belém.
Mas, fora desse
período, nunca é tarde para que a Igreja se lembre dos ensinamentos de Jesus
Cristo, e, como Igreja, que os fiéis cristãos façam sempre a opção preferencial
pelos pobres e a defesa veemente da conservação do meio ambiente. Inexiste
empecilho em se aliar a prática da fé ao exercício do combate às desigualdades
sociais e econômicas. O método “ver, julgar, agir”, que inspirou as Comunidades
Eclesiais de Base, não caiu em desuno, e, como cristãos, é possível a todos dar
enorme contributo à melhoria de vida das pessoas, por diferentes tipos de
ações. Dom Hélder Câmara e Padre Júlio Lancellotti já mostraram como se faz
isto. A aplicação da Teologia da Libertação, ou de parte da sua doutrina, não
impede nem atrapalha o culto a Deus e a busca do conforto espiritual aos fiéis,
mas, ao contrário, fortalece a busca pela construção do que se entende como o
Reino do Céu.
Alcimar Antônio de
Souza