sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Homenagem a Maria do Junco

Maria do Junco: mãe exemplar, catequista vocacionada

Minha mãe, chegou o dia em que nossas existências terrenas haveriam de se separar. E nesse dia não me sinto feliz em usar a escrita, à qual a senhora tanto insistiu que eu aprendesse, porque justamente nesse dia tenho que lhe dizer algumas palavras que à primeira vista podem soar como despedida, mas que na verdade são apenas uma justa homenagem à sua história de vida.

Hoje, diferentemente do que faço cotidianamente, escrevo levado por um profundo sentimento de perda, de angústia, de saudade. Esta saudade em verdade já me corroía há algum tempo, pois a realidade me mostrava que dias mais difíceis viriam, e que nesses dias eu e todos os que te amamos não mais teríamos a sua companhia. A fé em Deus e a esperança nos avanços da Medicina me faziam acreditar que iríamos retardar esse momento para um futuro distante. De fato, mamãe, a sua fé em Deus e o auxílio que recebestes dos homens da Ciência lhe fizeram travar, com vitórias, uma luta injusta e desumana contra duas doenças graves.

Desse sofrimento, porém, não quero falar muito. Quero apenas dizer que perdi a pessoa mais importante da minha vida, uma mulher que, além de excelente mãe, soube registrar o seu nome na recente História de Messias Targino, graças ao seu jeito simples, sincero, decidido e também de muita perseverança.

Lembro-me do dia, quando eu ainda tinha cinco anos, em que a senhora me vestiu com aquela farda simples do antigo Grupo Escolar Apolinária Jales e me trouxe uma pasta com lápis, caderno e mais um pouco de material escolar que sua pouca renda permitia comprar. Levou-me para o primeiro dia de aula. Mais que isso, a senhora recomendou à professora que, se eu desse trabalho, poderia me colocar de castigo, além de lhe contar o ocorrido, para que eu fosse novamente punido, agora em casa. Essas recomendações, aliás, a senhora fez a meus professores por várias vezes durante a minha estudantil.

Quando um dia fui reprovado no antigo primário, consegui esconder o fato por alguns dias, temendo a sua reprimenda, mas ela veio juntamente com a verdade. Nem de longe passou por sua cabeça que o problema não pudesse ser meu, e de imediato recebi a sua implacável censura ante aquele meu ato estudantil irresponsável. E como isso me fez bem adiante!

Separada ainda cedo do meu pai, a senhora logo passou a desempenhar os papéis de mãe e pai, numa época em que as dificuldades eram imensamente maiores que as de hoje. À base do trabalho braçal, a senhora, com muita dignidade, nunca deixou me faltar o essencial para viver, pois além do alimento e das roupas singelas de filho de pobre, deu-me também muito carinho, amor e todos os cuidados que uma mãe pode dispensar a um filho.

Mesmo separada de meu pai, a senhora nunca se esquivou de tentar me aproximar dele e da sua família, também minha família, e periodicamente me levava até o Município de Jaçanã, onde encontrei meu pai, meus avós, meus tios e tias, meus primos e primas. Esse gesto, repetido várias vezes ao longo de nossas vidas, fez-me ver o quanto de nobreza havia em seu coração, pois, mesmo com as diferenças naturais de uma separação, não me deixou ficar longe do meu pai e da minha outra família.

Filhos biológicos a senhora só teve a mim. Mas outros filhos a vida lhe deu. É pela senhora que ainda hoje, por exemplo, meu primo Novinho me chama de irmão, porque num dado momento da vida ele foi acolhido como filho em sua humilde residência na cidade de Patu, como assim também aconteceu com várias outras pessoas de Messias Targino.

Pequena e Lindalva também sempre se sentiram suas filhas, pelos longos anos de convivência que tiveram com a senhora. Andaram bastante, segundo relatam, porque uma coisa lhe fazia muito bem: andar, conhecer pessoas, fazer amizades. Faço esse registro porque ouvi de sua boca a vida toda que tinha Pequena e Lindalva como suas filhas.

Dos filhos e filhas que a vida lhe deu, sua sobrinha Elizabete foi a que esteve mais presente nos momentos mais difíceis. Era ela a única pessoa que, nos instantes agudos de crises de Alzheimer, a senhora jamais esquecia o nome. Nesses dias mais duros, em que a doença lhe furtava a memória e a lucidez, a senhora chegava a me desconhecer e a desconhecer outras pessoas do seu convívio, mas nunca esqueceu Beta, a quem a senhora sempre chamava pelo nome.

Ser mãe, portanto, foi uma doce tarefa que a senhora cumpriu fielmente, fazendo jus ao nome de Maria, o mesmo da Mãe do Senhor Jesus e da Mãe espiritual de todos nós. Para ilustrar essa realidade, vou contar apenas dois episódios recentes, ocorridos quando a senhora já sofria dos males que tanto lhe fizeram padecer. O primeiro se deu numa véspera de Natal, quando fui dormir ao seu lado. Se era eu quem deveria só dormir depois da senhora para também lhe cuidar naquela noite, foi justamente a senhora quem, de madrugada, cobriu-me com um lençol (como sempre o fazia nos meus tempos de criança) e direcionou o ventilador para o meu lado, passando depois uma das mãos sobre a minha cabeça. Acordei mas fingi ficar dormindo, pois aqueles gestos de carinho invertiam a lógica daquele momento e me faziam ver ainda mais como a senhora me amava.

Outro episódio, este repetido várias vezes, ocorria quando eu chegava para lhe visitar por volta do meio dia. Antes de eu perguntar se a senhora havia almoçado, que seria o agir natural para aquele momento, a senhora indagava: “Já almoçou, meu filho?”. E, antes que eu respondesse, seu divino instinto materno lhe fazia dizer: “Beta, o menino não almoçou. Bote aqui o almoço dele!

Se para mim, seu filho, a senhora sempre foi uma mãe exemplar, para a comunidade as suas atitudes foram também muito nobres, pois a senhora dedicou a sua vida aos trabalhos voluntários, tendo como palco principal – mas não o único – a Capela de Nossa Senhora das Graças, a sua segunda casa.

Sem ter conseguido se tornar freira, apesar de ter frequentando um convento, a senhora encontrou outra forma de servir a Deus e à Igreja. Fez da catequese de crianças e adolescentes uma bandeira de vida. Por mais de cinquenta anos de dedicação à Igreja Católica, a senhora deu aulas de catecismo a várias gerações diferentes. Rígida nos ensinamentos, transformava-se em criança ao final de cada aula, quando se juntava aos alunos da catequese para as brincadeiras de cantiga de roda realizadas na calçada ou no pátio da Igreja de Nossa Senhora das Graças.

E o seu trabalho à frente da Igreja não se limitou à catequese. No Município, a senhora foi uma das pessoas fundadoras da Legião de Maria, da Cruzada Eucarística e do Movimento dos Focolares, na época abreviado como “Palavra de Vida”.

Nesses trabalhos voluntários, ajudou a fundar vários grupos de jovens, desempenhou as funções de Agente de Pastoral e também ajudou a fundar em Messias Targino a Pastoral da Criança, que, mais do que um movimento religioso, é também um trabalho de largo alcance social, com muitos reflexos diretos e positivos na vida de crianças e adolescentes.

Agora em 2015, próximo de ser iniciada mais uma Festa de Nossa Senhora das Graças, padroeira de Messias Targino, infelizmente a senhora teve que nos deixar fisicamente. Será difícil imaginar que, depois de mais de seis décadas, a Festa de nossa padroeira não terá a sua presença.

Minha mãe, hoje olho para trás e vejo que a senhora cumpriu todas as missões que o Senhor Deus lhe confiou e que ao longo da vida foram aparecendo. Foi mãe exemplar, dedicou meio século a trabalhos voluntários em prol da Igreja e da comunidade e foi, acima de tudo, uma dessas pessoas que a gente pode chamar sem meios termos de guerreira, porque lutou bravamente para superar as adversidades naturais de uma vida pobre e sofrida, sem nunca abaixar a cabeça, sem nunca perder a dignidade.

Sei que tenho minhas falhas como filho e como pessoa, mas elas decorrem unicamente da minha condição humana. Todas as minhas virtudes foram decorrentes do aprendizado, dos valores e dos conceitos que a senhora, minha mãe, ao longo da minha vida me passou, sempre com ternura, mas também com o rigor que a ocasião merecesse.

Graças a Deus, orgulha-me de ainda ser conhecido por várias pessoas como Alcimar de Maria do Junco, pois, de fato, sempre tive e quero continuar a ter como referência a sua pessoa, que abre portas, agrega amizades e me faz ser conhecido como uma pessoa de bem.

Neta de Manoel Fernandes Jales (Sorinho) e Maria Cândida de Almeida e filha de José Severino de Souza e Noêmia Maria de Almeida, a senhora, minha mãe, orgulhosamente deixou o seu nome lançado na ainda recente História desse Município. E o fez sem pompa, sem dinheiro, mas apenas com seu exemplo de vida e com suas atitudes na comunidade.

Seus netos João Vítor, Isac e Maria Rita sempre se orgulharão de saber que um dia tiveram como avó uma pessoa tão respeitada em seu meio social. Maria Rita, aliás, já é carinhosamente chamada por nós de Maria do Junco, dada a enorme semelhança física e de alguns comportamentos semelhantes aos seus.

Seus irmãos que agora ficam (Rita, Sales e Marinalda) sentirão sua ausência. Dos treze filhos de José Severino e Noêmia, restam agora esses três.

Como filho, só tenho a agradecer a Deus por ter me feito nascer de seu ventre e crescer sob seus cuidados.

Os agradecimentos, porém, não são só meus. Arrisco-me a dizer que sua filha-sobrinha Elizabete também diria as mesmas coisas, se a emoção lhe deixasse falar nesse momento. Acredito que sua sobrinha Eduarda, que sempre lhe chamou de Dadá, pensa o mesmo.

Em seu nome, mamãe, também quero agradecer a todos aqueles e aquelas que, ao longo desses últimos cinco anos, ofertaram um pouco do seu tempo para lhe ajudar de alguma forma. Foram várias as pessoas, e aqui não vou nominar para não incorrer em injustiças. A todas essas pessoas quero agradecer do fundo do meu coração.

À prima-irmã Elizabete, de modo bem especial, quero agradecer pelo imenso carinho que lhe dedicou nesses anos. Sem ela nós não teríamos conseguido enveredar pelas trincheiras dessa batalha, desumana e desigual.

À comunidade messiense e aos muitos amigos de Maria do Junco, daqui e de fora, quero agradecer pela presença e pelas mensagens de carinho manifestadas de diversas formas e por diferentes meios.

Colhendo o que plantou, a senhora minha mãe recebe agora essa manifestação de carinho e solidariedade de uma quantidade imensa de pessoas.

Com a certeza de que fostes uma humilde e correta serva de Deus; com a certeza de que cumpristes nessa terra todas as missões que lhe foram dadas; com a certeza de que plantastes uma semente de amor e de respeito para várias gerações, descanse em paz, Maria José de Souza, ou simplesmente Maria do Junco. Do alto de sua misericórdia e com a medida exata da Justiça, o Senhor Deus a receberá e lhe dará um lugar de repouso em sua morada.

Seu corpo se vai, sua presença espiritual continuará no meio de nós.

Alcimar Antônio de Souza

Seu filho

(Texto lido  pela professora Maria da Glória Andrade Rocha na missa de corpo presente de Maria José de Souza, celebrada na Capela de Nossa Senhora das Graças, em Messias Targino, em 12 de novembro de 2015)