sábado, 16 de março de 2024

Origens

O Ofício

27 de novembro é o dia dedicado a Nossa Senhora das Graças, uma das muitas denominações dadas pela Igreja Católica a Maria, a Mãe de Jesus Cristo. Ela é a Padroeira de diversos Municípios do Rio Grande do Norte, incluindo-se Messias Targino, além de dar o nome a diversas Paróquias espalhadas pelo Estado.

Em 2023, a festa cristã-católica alusiva à Maria Santíssima trouxe-me uma recordação de infância, que graças a Deus nunca me saiu da lembrança. Pela correria do cotidiano, fui adiando o dia do registro, até que, nesses dias, novamente diante da Capela de Nossa Senhora das Graças, senti que preciso compartilhar essa recordação.

Em Messias Targino, meu principal ponto de moradia foi a casa de minha avó materna Noêmia Maria de Almeida, ou Noêmia de Soro (apelido de seu pai Manoel Fernandes Jales), ou Noêmia da Igreja (referência ao seu trabalho de zeladora da Capela de Nossa Senhora das Graças, por décadas).

A minha casa, na antiga Rua João Jales Dantas, agora Avenida Genuíno Fernandes Jales, estava localizada em frente à Praça Central João Jales Dantas e a poucos metros da Capela de Nossa Senhora das Graças.

Nessa época eu ainda dormia cedo, e, por consequência, também acordava mais cedo.

Em todos os dias da semana, eu geralmente acordava instigado pelo cheiro do café que a minha avó fazia, num fogão a base de lenha, encravado na arquitetura rústica e simplória da cozinha, que ficava a poucos metros da sala onde eu costumava espichar a minha rede, bem ao lado da rede da minha avó, a quem sempre fui muito apegado e por quem sempre fui muito protegido.

O café da minha avó era aquele comprado em grãos, que ela pisava num pilão de madeira de cerca de um metro de altura e depois torrava num grande tacho, no velho fogão a lenha.

Mas, aos sábados, eu era acordado por outro motivo. Não era o aroma do café que me puxava da surrada rede.

Dormindo a uma curta distância da Igreja de Nossa Senhora das Graças, de lá eu ouvia uma música lindíssima, uma entoação afinada, uma prece em forma de cânticos. Eram a minha avó Noêmia, minha mãe Maria do Junco, minha tia Rita, minhas tias-avós Áurea, Antônia e Sebastiana, minha “tia” Basta (Basta de Tonho de Rafael), minha “tia” Zira e várias outras mulheres da comunidade cantando o Ofício de Nossa Senhora das Graças.

Sim, o Ofício de Nossa Senhora das Graças, cantado, era uma tradição bastante comum na época.

Se atentarmos para o entendimento de que Canto Gregoriano é o canto litúrgico próprio da Igreja Católica, ou um gênero de música sacra cristã que tem suas raízes em tradições musicais judaicas de recitação salmódica, então podemos dizer que estávamos diante (ou a poucos metros, no meu caso) de autênticos cânticos gregorianos, entoados por pessoas humildes, de religiosidade e fé inabaláveis.

Cantavam mais com a alma do que com a voz, de tão linda que era aquela entoação. Brincavam de fazer primeira e segunda vozes, com estilo inigualável. Minha tia-avó Antônia Almeida (Toinha de Soro), por sinal, fazia uma segunda voz de causar inveja a muitos cantores profissionais.

Numa cidade pequena, de quase nenhum movimento urbano nas primeiras horas da manhã, os cânticos entoados no Ofício de Nossa Senhora transpunham as paredes bem fornidas da Capela, e, entre janelas e portas, espalhavam-se suavemente por todo o Centro da cidade.

O espanto é que grande parte do Ofício era entoado em Latim, sendo que algumas das cantoras daquele belíssimo coral sabiam pouco até mesmo de Português, a nossa língua.

Não era apenas a tradição do uso do latim pela Madre Igreja Católica que “ensinava” aquelas mulheres a cantar o Ofício de Nossa Senhora na “língua-mãe”. Acredito – e isso é convicção minha – que Deus lhes tocava profundamente o coração e a alma, e lhes dava o dom de cantarem com tanta maestria o Ofício dedicado à Mãe de Jesus Cristo, a quem Deus, através do Anjo, confiou a missão de gerar seu Filho Unigênito.

Essa lembrança me traz muitas saudades, de um tempo de vida maravilhoso (apesar das dificuldades da época) e de pessoas que nos amaram e às quais nós amamos, talvez sem nunca termos dito isso uns aos outros.

A execução do Ofício de Nossa Senhora das Graças durava, em cada sábado, cerca de quarenta e cinco minutos a uma hora. Porém, ainda hoje, de vez em quando, principalmente aos sábados, pego-me ouvindo aqueles cânticos, e vêm à minha lembrança as imagens de todas aquelas mulheres, principalmente da minha avó Noêmia, a quem muito devo por tudo o que me fez e me ensinou de bom.

Ave, cheia de graça!

Alcimar Antônio de Souza


Nenhum comentário: