sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Crônica

O dobro ou nada

Por Luiz Guilherme Piva

Jogo mais importante, sempre tinha jogador que estava comprado.

Os times não pagavam nada e na cidade rolava muita aposta. Jogo comum, com apostas pequenas, não dava pra descarregar. Mas quando a coisa crescia, já dava pra dar uma parte prum zagueiro, um goleiro, um centroavante.

Mas nunca se sabia quem era, quem pagava, quem recebia. Gols com falhas sutis ou evidentes aconteciam, mas quem poderia garantir? Futebol é assim mesmo, diziam. A cidade não era grande – então, o segredo era tudo para apostadores e vendidos. Senão, nunca mais.

Mas houve uma decisão que era vida ou morte.

E a tensão, a discussão, a rivalidade e a expectativa chegaram a tal ponto que o volume de apostas foi crescendo muito mais do que se esperava. Duas semanas antes já acumulava o dobro do normal.

Isso só fez aumentar as apostas. Até quem nem sabia começou a pôr um troco: donas de casa, crianças, professoras, o sargento do tiro-de-guerra, até um micro-ônibus da cidade vizinha veio trazendo uma lista e as notas amarradas com gominha.

O dinheiro foi confiado ao juiz da cidade, que verificava a lista, os valores, abria o cofre de aço do Banco do Brasil junto com os guardas e a supervisora, punha lá o envelopão. Todo dia. Às oito da noite, quando a banca fechava. Juntava uma multidão na porta.

Quando o juiz saía, suspiros, mãos esfregando, sorrisos. Ele então dizia o subtotal até o momento.

“Oh!”. “Meu Deus!”. “É a minha chance!”. “Vou ajudar tanta gente!”. “Eu sumo e ninguém me vê!”. “Ai, ai!”. “Eu caio durinho da silva, dá até um medo!”.

A inflação atingiu os vendidos, claro. Encontros secretos terminavam sem acordo, dados os exageros dos preços.

Zagueiro que costumava sair pelo valor de uma bicicleta já pedia quase uma moto. Goleiro, então, sempre fora um pouco mais caro. Uma moto, digamos. Agora, por menos de um fusca não tinha negócio.

O pior é que os apostadores tradicionais tiveram que apostar muito mais do que o de costume para valer o retorno – proporcional à aposta -, tendo em conta o número de ganhadores que um dos resultados produziria. E outros, que apostavam médio, começaram a apostar alto.

A roda seguia.

Jogadores que nunca haviam sido procurados por serem insuspeitos – caixa de banco, escrevente, oficial de justiça, diretor de escola – começaram a ser abordados. E a se mostrar menos insuspeitos. E outros, que já tinham recusado propostas, começaram eles próprios a procurar os apostadores.

E tanto apostadores quanto jogadores multiplicavam seus lances: negociavam com vários ao mesmo tempo.

Mas tudo em segredo. Ninguém contava nada pra ninguém.

Reuniões de madrugada. Telefonemas sussurrados. Encontros fortuitos.

A cidade só falava e só pensava no jogo, nos prêmios. Mas fingia não dar importância.

“Deus é quem sabe”. “Que vença o melhor”.

Até que a bola rolou.

Casa cheia: além dos degraus de cimento de um lado e atrás de um gol, os barrancos, muros, terraços, janelas, escadas, postes, telhados e varandas lotados.

O juiz, o da Justiça, ficou na tribuna, que era uma cadeira da Brahma perto do radialista, na linha do meio de campo. Um segurança de cada lado.

Mas o jogo, que começou pegado, começou a ficar estranho. Escorregões, furadas, tropeções, chutes na lua. Todo mundo percebeu que a compra tinha passado dos limites. Que talvez todos tivessem sido comprados. O que, inevitavelmente, ia produzir um desastre, porque não valia empate nas apostas.

Quando empatava, cada um pegava seu dinheiro de volta.

Seria normal. Um consolo. Mas, tendo em vista a perspectiva de ganhar tanto com uma aposta simples, ou de ganhar um dinheirão com uma aposta alta, o empate começou a ser visto como o pior que poderia acontecer.

Os torcedores passaram a vaiar, a incentivar, torcer e apoiar o time no qual apostaram. Como não havia coincidência total entre os torcedores de um time e as apostas que eles fizeram, houve situações inusitadas: grupos uniformizados de um time xingando seus jogadores e apoiando os adversários. Dos dois lados. Misturados entre si e com os que mantiveram nas apostas a sua preferência como torcedores.

Chato foi ver diretor de um time torcendo pelo outro. Desbragadamente. O pescoço vermelho, inchado, a glote exposta.

À medida que o tempo passava, e a bola pra lá e pra cá numa área restrita, feito uma bigorna que ninguém conseguia empurrar por mais de dez centímetros, a exasperação aumentava.

Os jogadores começaram a temer as consequências. Pior é que, no empate, eles também não levariam nada. E ainda perigava apanharem, em função do clima criado.

Um goleiro chegou a pedir pro juiz: “dá um pênalti contra mim que eu te dou uma parte do meu!”. O juiz: “eu tô comprado pra ajudar seu time! Não dá!”.

E mesmo que desse, ninguém se aproximava da área adversária, não haveria lance pra pênalti. Só lateral, dividida, trombada, contusões demoradas, os mais espertos pediram substituição logo, ninguém mais sabia o que fazer.

Já anoitecia, não tinha refletores, aquilo virou um caldeirão de tensão sob penumbra.

O meritíssimo, claro, percebeu. Olhou para o radialista, para os seguranças, para todos que conseguia ver e concluiu que somente ele, na cidade toda, ou ao menos ali no estádio, não tinha apostado em nenhum time e nem comprado ninguém.

O que se passou em seguida no estádio e na cidade eu não sei. Há muitas versões, incluindo mortes, depredações, atropelos, suicídios, separações de casais, esganações, facadas e tiros. Gente que teria fugido deixando tudo pra trás. Um horror.

Só sei que, no lusco-fusco, o juiz (o da Justiça), levantou-se pra ir ao banheiro, esgueirou-se no meio de todos, perto do portão deu um passo pra fora, saiu na rua vazia, pegou sua lambreta, foi ao Banco do Brasil e entrou com autoridade judicial devidamente argumentada com os guardinhas, pegou os pacotes de dinheiro, pôs dentro dos malotes de banco, pendurou-os nos ombros, subiu na lambreta, agradeceu, entregou a chave do cofre.

E sumiu.

Uns falam que foi pro Caribe. Outros, que está no Rio. Uns juram que ele morreu e o dinheiro foi roubado. 

Tem até versão de que montou boate com mulheres e roleta no Paraguai.

Ele, de tempos em tempos, escuta uma dessas histórias.

E morre de rir.

Fonte: Blog do Juca Kfouri, do portal UOL

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