O cinema na Boate Sândalus
Nas grandes cidades,
diminuíram de quantidade as salas de cinema. Geralmente as poucas salas ainda existentes
estão acomodadas em grandes centros multi-comerciais, conhecidos como shopping center´s, e somente alguns
poucos cinemas fora desses locais continuam em funcionamento pelo País afora.
O início dessa diminuição
abrupta das salas de cinema coincidiu com a chegada das locadoras de vídeo ao
mercado. Mas estas também desapareceram em razão da oferta do mesmo item de
entretenimento - cinema - por tecnologias diversas. A televisão por assinatura
e outros serviços eletrônicos ou virtuais colocam à mão da população filmes,
séries e documentários, por preços irrisórios e com qualidade indiscutível.
Mas estamos
falando de uma realidade presente, quase no final do primeiro quarto do século
XXI. Lá atrás, nos anos 70 e 80 do século passado, a realidade era bastante
diferente, principalmente para nós, que morávamos na pacata cidade de Messias
Targino, distante mais de trezentos quilômetros de Natal, capital do Estado
potiguar.
Aparelhos de
televisão eram produtos de luxo em algumas residências, e mais das vezes quem
tinha o televisor nem podia assistir normalmente à programação do único canal
que aparecia, pois o sinal vivia fugindo, e as pessoas donas dessa preciosidade
da época comumente tinham que direcionar as antenas de TV para Martins-RN,
Brejo do Cruz-PB ou outro Município mais próximo onde houvesse uma repetidora
do sinal de TV.
Acesso a cinema?
Tínhamos, porém de outro jeito, que chega a dar saudade.
Eu morava na Rua
João Jales Dantas, que depois foi batizada de Avenida Genuíno Fernandes Jales.
A casa da minha avó, Noêmia, onde morávamos eu e minha mãe juntamente com
outros parentes, ficava colada num imóvel de José Dantas Jales, popularmente
conhecido por Dedeca Jales, pessoa das mais sérias e das mais honestas que já
conheci.
Nesse imóvel, na
sua parte de frente, Dedeca Jales mantinha um depósito de bebidas, e um bar logo
ao lado, na esquina. A Boate Sândalus ficava com a parte frontal posta no
cruzamento da Rua João Jales Dantas com a Rua Desembargador José Vieira (atual
Rua Professor Otoniel Tomaz de Almeida), e tinha uma parte maior ao fundo,
inclusive com salão para festas.
Nos dias de
cinema na cidade, logo cedo se ouvia um carro de som que circulava pelas ruas,
anunciando a grande atração cinematográfica que iria ser exibida à noite. Zé
Pacamom era quem mais vinha a Messias Targino para nos trazer filmes até então
desconhecidos do público messiense.
Ao lado dessa
publicidade através do carro de som, o promotor do evento também colocava, em
frente à Boate Sândalus, um cartaz que dizia qual seria o filme exibido, quem
eram os artistas da fita e qual o horário de início. Dizer o local da exibição
nesse cartaz nem era preciso, pois o carro de som já o informava e nós até já o
sabíamos. A Boate Sândalus, de Dedeca Jales, seria o palco de mais uma noitada
de exibição de um bom filme.
Geralmente Zé
Pacamom e os outros “promotores” que também exibiam filmes na cidade traziam
clássicos do cinema nacional, e dentre os atores mais estrelados tínhamos Tony
Vieira, Cara de Gato, Teixeirinha e “grande elenco”, expressão por sinal sempre
utilizada nas chamadas que o próprio promotor do evento fazia ao microfone de
sua bem conservada Chevrolet Veraneio ou de uma belíssima Rural.
À tarde,
repetia-se o anúncio feito através de carro de som e novamente se colocava em
frente à Boate Sândalus o “cartaz do filme”, como costumávamos resumir na
indagação que fazíamos entre nós: “Já foi ver o cartaz do filme de hoje?”
À noite, uma
parcela significativa da população se dirigia para a Boate Sândalus, para
comprar o ingresso e finalmente adentrar naquela sala de cinema, só nossa, para
uma noite de muita alegria e entretenimento. Eu nem sempre ia, pois nem sempre
dispunha do valor financeiro do ingresso, e noutras vezes o filme exibido era
impróprio para menores de idade.
A propósito, como
não existia na época a classificação politicamente correta que existe hoje,
Dedeca simplesmente proibia todo e qualquer menor de idade a ver esse tipo de
fita de cenas mais “assanhadas”, espécie de filme que, em verdade, era uma
exceção, pois no geral ficávamos mesmo com os enredos não pornográficos do cinema
nacional. E a menoridade na época somente era quebrada aos vinte e um anos.
Salvo engano, o
amigo Mulico sempre auxiliava na promoção daquelas noites de exibição da sétima
arte na Boate de Dedeca. Encarregava-se da venda dos ingressos ou da sua
conferência no momento da entrada, sempre com um sorriso no rosto e a alegria
de quem gostava do que fazia.
Quando a
película cinematográfica era de exibição proibida para menores de idade, Dedeca
Jales, que também foi comissário de menor por longos anos (atualmente seria
agente de proteção à infância e à adolescência), encarregava-se o próprio de
passar o olho na fila de entrada e barrar quem não tivesse a “idade certa” para
assistir ao filme.
Nessa fiscalização
de faixa etária, Dedeca nem pedia documentos, pois ele conhecia um a um todos
os meninos, meninas, rapazes e moças da comunidade messiense. Botava o olho
sobre o sujeito (ou a sujeita) e já tinha a “ficha” completa. Podia ser filho
ou filha de quem fosse, que ele mandava dar meia volta acaso não fosse ainda maior
de idade, sem fazer qualquer distinção social ou econômica. Era o jeito dele:
correto.
Na hora da
exibição, um lençol de cor branca amarrado na parede dos fundos da Boate servia
como tela, e as fitas do filme iam girando num grande rolo de um velho e já
bastante usado projetor. Sentados em tamboretes ou mesmo no chão, nós nos encantávamos
com aquilo. Era o que nos havia de mais moderno da sétima arte, que
naturalmente já encanta.
Vez por outra se
notava que a película havia sido emendada, de tão gasta que já estava, posto
que já havia sido exibida dezenas de vezes noutros lugares. Uma emendinha na
fita não era problema. Perdia-se apenas um pequeno trecho da produção exibida.
O ruim mesmo era
quando a fita se rompia ali, no momento em que as cenas estavam sendo
apresentadas. Às vezes Zé Pacamom (ou outro promotor do mesmo evento) conseguia
consertar o problema, e o filme continuava sendo exibido, com algum corte de
cenas que a nossa imaginação se encarregava de completar.
Entretanto,
também acontecia de não ser possível ao dono da fita proceder à emenda, e então
a sessão era encerrada antes da hora prevista. Mais contido pelos rigores do
aprendizado de Maria do Junco, minha mãe, e temendo que “seu” Dedeca me
repreendesse, pois mamãe lhe dava autoridade para tanto, eu não fazia coro às
vaias e aos gritos de reprovação que nesse instante tomavam conta do salão da
Boate Sândalus. Permanecia calado, mas também ficava revoltado com o término
antecipado da sessão.
Todavia, isso era
um protesto momentâneo, pontual. Na outra semana, se Zé Pacamom ou outro
exibidor de filme voltasse à cidade, e se houvesse recurso financeiro
disponível, lá estaríamos nós todos novamente, mais uma vez encantados pela
arte do cinema, ali nos trazida sem nenhuma pompa das modernas salas de sessões
de hoje, mas capaz de nos proporcionar uma alegria sem igual.
Depois
apareceram as antenas parabólicas, e aos poucos foi aumentando o número de
televisões nas residências, inclusive na minha. Os carros de som que durante o
dia nos convocavam para uma animada sessão cinematográfica foram também desaparecendo.
O mercado e a modernidade se encarregaram de nos tirar essa modalidade de
entretenimento naquele formato tão provincial mas ao mesmo tempo tão aglutinador
de uma comunidade.
Com o passar do
tempo, perdemos a sala de cinema da Boate Sândalus, do grande amigo Dedeca
Jales.
Mais
recentemente, perdemos a presença física de “seu” Dedeca, uma das pessoas mais
queridas que Messias Targino já viu.
Ainda bem que
nos restaram as lembranças. Vamos então as registrar, antes que os efeitos do
tempo as apaguem de nossas memórias.
Deste canto,
segue um viva à Boate Sândalus, que hoje funciona, como homenagem, como “Bar do
Dedeca”!
Vai também o aplauso
silencioso e saudoso à memória de Dedeca Jales, responsável por tornar melhores
os dias de infância desse filho de Maria do Junco e de centenas de outros
filhos de Messias Targino!
Alcimar Antônio de Souza
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