O pântano da Venezuela
Por Paulo Afonso Linhares
Há exatos 50 anos, causou inegável impacto o
retorno a Caraúbas de um nativo que, segundo se dizia, morava num país bem
distante - no “oco do mundo”, como redarguia Dona Rita Ferreira Linhares sempre
que lhe falavam sobre o assunto - chamado Venezuela, onde, internado na selva
braba, garimpava ouro. E foi justo o ouro que o rapaz trazia no próprio corpo,
em configurações diretas: nos muitos dentes (de ouro), como era chique àquela
época, que lhe valeu a alcunha de “Pedro Boca Rica”.
Causava positivo espanto, também, os avantajados e
não menos reluzentes adereços de ouro maciço que usava sob forma de anéis,
pulseiras e aquela grossa corrente que lhe adornava o atarracado e forte
pescoço, sobre a qual o indefectível Jairo Bezerra, em mais um dos seus divertidos
comentários, dizia ser capaz de “arrastar um caminhão e valer mais do que
dois”. O breve retorno do “Boca Rica” era para reverenciar a São Sebastião, na
“Festa de Janeiro”, além de levar a esposa, uma das filhas do ferroviário
Honório Gouveia, bem assim outros familiares seus para os confins da Roraima,
de onde partia suas incursões em busca do ouro venezuelano. Embora o brilho de
seus tantos ouros inda encham a memória de minhas retinas, nunca mais soube do
paradeiro desse conterrâneo.
Vem à tona essa reminiscência quando o assunto, ou
melhor, a crise de mais uma semana do governo Bolsonaro tem causa na
atabalhoada operação de “ajuda humanitária ao povo da Venezuela” que armaram
Jair e seu maluco ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, sempre na
esteira do igualmente falastrão Donald Trump que, a todo custo, deseja o
petróleo venezuelano para, além de outras planejadas matanças, saciar a sede
das grandes empresas petrolíferas norte-americanas chamadas "the new
Seven Sisters", segundo o Financial Times, a exemplo do fizeram
no Iraque, na Líbia e onde mais houver petróleo que esteja na mira da “Big
Oil” - que é o nome que se dá a essas sete maiores companhias - e ao
alcance da terrível máquina de guerra dos Estados Unidos da América.
Nessa baboseira de “ajuda humanitária”, tudo só
favorece aos interesses norte-americanos, sejam econômicos ou políticos: no
primeiro caso, usurparão o rico “ouro negro” venezuelano, além de movimentar
sua azeitada indústria bélica, caso haja algum conflito armado; no segundo, os
EUA aumentariam sua presença na América do Sul, região tão menosprezada pelas
políticas externas de sucessivos governos norte-americanos, democratas ou
republicanos indistintamente, tudo para colimar o antigo desejo do Tio Sam
de chantar em países amazônicos bases militares suas. Ressalte-se que
recentemente, tanto Jair Bolsonaro, logo que empossado como presidente da
Republica, quanto seu ministro Ernesto Araújo, ofereceram de bandeja aos
norte-americanos a instalação de um base militar em território brasileiro.
Diante da imediata reação por parte de militares brasileiros, inclusive do
vice-presidente, general Hamilton Mourão, a ideia estúpida e antinacional foi
arquivada, por enquanto.
O inglês Lord Palmerston, Henry John Temple, 3º
Visconde de Palmerston, ex-primeiro-ministro e antigo ministro dos negócios
estrangeiros da Grã Bretanha, na era vitoriana, foi quem primeiro deu
interpretação pragmática sobre os interesse de um Estado na ordem
internacional: “Nations have no permanent friends or allies, they only have
permanent interests.” Numa tradução livre, “ nações não têm permanentes
amigos ou aliados, elas têm somente interesses permanentes”. Charles de Gaulle
e Henry Kissinger, ex-presidente francês e ex-secretário de Estado
norte-americano respectivamente, cada um a seu tempo e com algumas poucas
variações, repetiram o pensamento “realpolitik” (ou de “interessenpolitik”)
do Lord Palmerston, que se tornou um dos mais assentados paradigmas nas
relações internacionais neste último século. Neste mesmo rumo, também, tem
razão a médica canadense e presidente internacional da organização humanitária Médecins
Sans Frontières ( Médicos Sem Fronteiras, como dizemos por aqui), Drª
Joanne Liu, quando diz que “Nações não têm amigos; elas têm interesses. A melhor
motivação para um Estado agir, se estiver longe de uma epidemia, é se a sua
própria segurança estiver em risco.”
Diante disto, cabe indagar quais os interesses do
Brasil nesse imbróglio venezuelano, já que os do Tio Sam estão bem claramente
postos, como os que possam traduzir a subserviência canina do Brasil à política
externa norte-americana na versão de Donald Trump, “the Tangerine Man”. Ou,
como diria o filósofo caraubense Zé da Pata, o Brasil, nessa orientação de sua
política externa, “tá engolindo corda, feito cacimbão”. Em suma, ademais de
quebrar toda uma tradição de competente diplomacia que remonta ao Barão do Rio
Branco, José Maria da Silva Paranhos Júnior, diplomata, advogado, historiador e
político brasileiro, que conseguiu a façanha de ter exercido o cargo de
ministro das Relações Exteriores de quatro presidentes da República: Rodrigues
Alves, Afonso Pena, Nilo Peçanha e Hermes da Fonseca.
Habilíssimo diplomata, o Barão do Rio Branco
empreendeu negociações com outros países cujas fronteiras com o Brasil
suscitavam de soluções. Os tratados que ele negociou com a Venezuela, Colômbia,
Equador, Bolívia, Peru, Uruguai, Argentina e Guiana Holandesa definiram os
contornos do território brasileiro, merecendo destaque o Tratado de Petrópolis,
de 1903, celebrado com a Bolívia, que permitiu a incorporação do território que
se tornaria o atual Estado do Acre, ao Brasil, o que rendeu a Rio Branco a
grande homenagem de ser o nome da capital acreana.
Certo é que o ideário e exemplo de Rio Branco,
passaram a balizar a diplomacia brasileira e a influenciar, até hoje, o
relacionamento do Brasil com outros países, segundo preceitos em boa hora
cristalizados no artigo 4º da Constituição Federal: “Art. 4º A República
Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes
princípios: I - independência nacional; II - prevalência dos direitos humanos;
III - autodeterminação dos povos; IV - não-intervenção; V - igualdade entre os
Estados; VI - defesa da paz; VII - solução pacífica dos conflitos; VIII -
repúdio ao terrorismo e ao racismo; IX - cooperação entre os povos para o
progresso da humanidade; X - concessão de asilo político. Parágrafo único. A
República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social
e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade
latino-americana de nações.”
Ademais de impor uma absurda e descabida
reorientação da política externa brasileira que toma por base a ideia falsa de
que, nos governos petistas, ela se pautava por questões ideológicas, inclusive,
no tocante à Venezuela, o fanatismo político que, por inspiração do guru Olavo
de Carvalho, impregna gravemente o presidente Bolsonaro e seu auxiliar Ernesto
Araújo, levando-os a defender um firme atrelamento do Brasil à atual política
exterior norte-americana, o que desconsidera por completo a existência dos
preceitos de regência das relações internacionais contidos no citado artigo 4º
da Constituição da República.
A crise da Venezuela se agudiza. A posição do
governo brasileiro, pautada por incabíveis questões ideológicas, é errônea e
poderá acarretar graves danos ao Brasil, nem tanto econômicos, mas,
eminentemente políticos. Em suma, o Brasil pode deixar de exercer forte
liderança e de ser o mediador privilegiado de conflitos entre países
sul-americanos, para se tornar mero vassalo dos norte-americanos na América do
Sul. Aliás, repita-se, a America Latina não desperta quase nenhum interesse por
parte dos EUA, salvo a Venezuela que detém uma das maiores reservas de petróleo
do planeta. Lembre-se novamente que países não têm amigos, mas, interesses. Foi
por isso que, na Guerra das Malvinas, em 1982, o governo dos Estados Unidos da
América fez tábula rasa da vetusta doutrina Monroe (“América para americanos”)
e apoiou a Grã-Bretanha contra a Argentina.
Sem dúvida, Maduro tem fortes pendores
antidemocráticos e antirrepublicanos, mas, é ilusão pensar que a despeito de
todos os percalços econômicos e políticos por que passa o seu país, que ele não
tem o apoio da maioria da população venezuelana e o mais importante:
contabiliza em seu favor as forças armadas que, diante dos esbirros
intervencionistas de Donald Trump, que também instrumentaliza os vizinhos
Brasil e Colômbia, tende a se unir mais em torno de Maduro por simples ‘impulso
nacionalista’. Neste momento, somente ocorreria uma queda de Maduro se os
militares fossem divididos.
Outro fator de enorme preocupação é o aparecimento,
na América do Sul, de três grandes aliados internacionais de Maduro - Rússia,
China e Turquia - que poderá garantir um equilíbrio de forças. Se o cenário da
Venezuela continuar a evoluir para confrontos armados externo, é quase certo
que russos e chineses vão ‘bancar’ a máquina de guerra venezuelana, a exemplo
do que, hoje, ocorre na Síria, onde a aliança militar do ditador Bashar Hafez
al-Assad com Moscou não apenas tem garantido sua permanência no poder, mas,
proporcionado-lhe importantes vitórias militares.
Doutra parte, merece frisar o quão ridículo tem
sido o reconhecimento por vários Estados do governo de Juan Guaidó, o tal
“presidente encarregado” da Venezuela, segundo o ministro brasileiro Ernesto
Araújo. Ora, é bem certo que não se pode dizer que Nicolás Maduro seja um
ditador, como vocifera a imprensa de muitos países ocidentais, inclusive, a do
Brasil. Embora a base legal da sua eleição e outras piruetas jurídicas de que
tem lançado mão mereçam veementes restrições, fato é que Henri Falcón,
candidato da oposição que obteve 21% dos votos válidos (equivalente a
1.820.000) não apenas participou do processo eleitoral como igualmente deu-lhe
validade, mesmo que não tenha reconhecido a vitória do seu adversário.
Aliás, a exigência maior dos países da União
Europeia é a realização de novas eleições, cuja aceitação poderá ser a carta na
manga de Maduro, para baixar a temperatura política. E o mais inusitado poderá
ocorrer: um processo eleitoral ‘clean’, democrático e supervisando por
entidades internacionais confiáveis e com a presença de observadores do mundo
inteiro, certamente terá Maduro como vencedor, caso seja candidato. Goste-se ou
não dele, mas, ainda é lastimavelmente a grande liderança política venezuelana.
E aí, como fica? Haverá um impasse mais profundo, a ser resolvido pelas armas.
Nada disso existiria, contudo, fosse respeitado o
direito de autodeterminação do povo da Venezuela e banida qualquer modalidade
de intervenção externa, humanitária ou interesseira, naquele país. São os
venezuelanos que devem resolver os seus problemas, aconselha o sensato
vice-presidente do Brasil, general Mourão. Mesmo porque é sabido que um
conflito armado naquela região amazônica pode afetar todo o Cone Sul. E ninguém
pense que sairá fácil e ileso de uma aventura naquelas selvas, que podem ser um
pântano tão perigoso quanto foi o aparentemente frágil Vietnã, há seis décadas,
quando a maior máquina de guerra do planeta foi fragorosamente derrotada por
homenzinhos que portava pontiagudos talos de bambu. É a História a dar lições.
Paulo Linhares é advogado e professor universitário.
Fonte: blogdachris.com