Maria do Junco: mãe exemplar, catequista vocacionada
Minha mãe, chegou o dia
em que nossas existências terrenas haveriam de se separar. E nesse dia não me
sinto feliz em usar a escrita, à qual a senhora tanto insistiu que eu
aprendesse, porque justamente nesse dia tenho que lhe dizer algumas palavras
que à primeira vista podem soar como despedida, mas que na verdade são apenas
uma justa homenagem à sua história de vida.
Hoje, diferentemente do
que faço cotidianamente, escrevo levado por um profundo sentimento de perda, de
angústia, de saudade. Esta saudade em verdade já me corroía há algum tempo,
pois a realidade me mostrava que dias mais difíceis viriam, e que nesses dias
eu e todos os que te amamos não mais teríamos a sua companhia. A fé em Deus e a
esperança nos avanços da Medicina me faziam acreditar que iríamos retardar esse
momento para um futuro distante. De fato, mamãe, a sua fé em Deus e o auxílio
que recebestes dos homens da Ciência lhe fizeram travar, com vitórias, uma luta
injusta e desumana contra duas doenças graves.
Desse sofrimento,
porém, não quero falar muito. Quero apenas dizer que perdi a pessoa mais
importante da minha vida, uma mulher que, além de excelente mãe, soube
registrar o seu nome na recente História de Messias Targino, graças ao seu
jeito simples, sincero, decidido e também de muita perseverança.
Lembro-me do dia,
quando eu ainda tinha cinco anos, em que a senhora me vestiu com aquela farda
simples do antigo Grupo Escolar Apolinária Jales e me trouxe uma pasta com
lápis, caderno e mais um pouco de material escolar que sua pouca renda permitia
comprar. Levou-me para o primeiro dia de aula. Mais que isso, a senhora recomendou
à professora que, se eu desse trabalho, poderia me colocar de castigo, além de
lhe contar o ocorrido, para que eu fosse novamente punido, agora em casa. Essas
recomendações, aliás, a senhora fez a meus professores por várias vezes durante
a minha estudantil.
Quando um dia fui
reprovado no antigo primário, consegui esconder o fato por alguns dias, temendo
a sua reprimenda, mas ela veio juntamente com a verdade. Nem de longe passou
por sua cabeça que o problema não pudesse ser meu, e de imediato recebi a sua
implacável censura ante aquele meu ato estudantil irresponsável. E como isso me
fez bem adiante!
Separada ainda cedo do
meu pai, a senhora logo passou a desempenhar os papéis de mãe e pai, numa época
em que as dificuldades eram imensamente maiores que as de hoje. À base do
trabalho braçal, a senhora, com muita dignidade, nunca deixou me faltar o
essencial para viver, pois além do alimento e das roupas singelas de filho de
pobre, deu-me também muito carinho, amor e todos os cuidados que uma mãe pode
dispensar a um filho.
Mesmo separada de meu
pai, a senhora nunca se esquivou de tentar me aproximar dele e da sua família,
também minha família, e periodicamente me levava até o Município de Jaçanã,
onde encontrei meu pai, meus avós, meus tios e tias, meus primos e primas. Esse
gesto, repetido várias vezes ao longo de nossas vidas, fez-me ver o quanto de
nobreza havia em seu coração, pois, mesmo com as diferenças naturais de uma
separação, não me deixou ficar longe do meu pai e da minha outra família.
Filhos biológicos a
senhora só teve a mim. Mas outros filhos a vida lhe deu. É pela senhora que
ainda hoje, por exemplo, meu primo Novinho me chama de irmão, porque num dado
momento da vida ele foi acolhido como filho em sua humilde residência na cidade
de Patu, como assim também aconteceu com várias outras pessoas de Messias
Targino.
Pequena e Lindalva
também sempre se sentiram suas filhas, pelos longos anos de convivência que
tiveram com a senhora. Andaram bastante, segundo relatam, porque uma coisa lhe
fazia muito bem: andar, conhecer pessoas, fazer amizades. Faço esse registro
porque ouvi de sua boca a vida toda que tinha Pequena e Lindalva como suas filhas.
Dos filhos e filhas que
a vida lhe deu, sua sobrinha Elizabete foi a que esteve mais presente nos
momentos mais difíceis. Era ela a única pessoa que, nos instantes agudos de
crises de Alzheimer, a senhora jamais
esquecia o nome. Nesses dias mais duros, em que a doença lhe furtava a memória
e a lucidez, a senhora chegava a me desconhecer e a desconhecer outras pessoas
do seu convívio, mas nunca esqueceu Beta,
a quem a senhora sempre chamava pelo nome.
Ser mãe, portanto, foi
uma doce tarefa que a senhora cumpriu fielmente, fazendo jus ao nome de Maria,
o mesmo da Mãe do Senhor Jesus e da Mãe espiritual de todos nós. Para ilustrar
essa realidade, vou contar apenas dois episódios recentes, ocorridos quando a
senhora já sofria dos males que tanto lhe fizeram padecer. O primeiro se deu
numa véspera de Natal, quando fui dormir ao seu lado. Se era eu quem deveria só
dormir depois da senhora para também lhe cuidar naquela noite, foi justamente a
senhora quem, de madrugada, cobriu-me com um lençol (como sempre o fazia nos
meus tempos de criança) e direcionou o ventilador para o meu lado, passando
depois uma das mãos sobre a minha cabeça. Acordei mas fingi ficar dormindo,
pois aqueles gestos de carinho invertiam a lógica daquele momento e me faziam
ver ainda mais como a senhora me amava.
Outro episódio, este
repetido várias vezes, ocorria quando eu chegava para lhe visitar por volta do
meio dia. Antes de eu perguntar se a senhora havia almoçado, que seria o agir
natural para aquele momento, a senhora indagava: “Já almoçou, meu filho?”. E, antes que eu respondesse, seu divino
instinto materno lhe fazia dizer: “Beta,
o menino não almoçou. Bote aqui o almoço dele!”
Se para mim, seu filho,
a senhora sempre foi uma mãe exemplar, para a comunidade as suas atitudes foram
também muito nobres, pois a senhora dedicou a sua vida aos trabalhos
voluntários, tendo como palco principal – mas não o único – a Capela de Nossa
Senhora das Graças, a sua segunda casa.
Sem ter conseguido se
tornar freira, apesar de ter frequentando um convento, a senhora encontrou
outra forma de servir a Deus e à Igreja. Fez da catequese de crianças e
adolescentes uma bandeira de vida. Por mais de cinquenta anos de dedicação à
Igreja Católica, a senhora deu aulas de catecismo a várias gerações diferentes.
Rígida nos ensinamentos, transformava-se em criança ao final de cada aula,
quando se juntava aos alunos da catequese para as brincadeiras de cantiga de
roda realizadas na calçada ou no pátio da Igreja de Nossa Senhora das Graças.
E o seu trabalho à
frente da Igreja não se limitou à catequese. No Município, a senhora foi uma
das pessoas fundadoras da Legião de Maria, da Cruzada Eucarística e do
Movimento dos Focolares, na época abreviado como “Palavra de Vida”.
Nesses trabalhos
voluntários, ajudou a fundar vários grupos de jovens, desempenhou as funções de
Agente de Pastoral e também ajudou a fundar em Messias Targino a Pastoral da
Criança, que, mais do que um movimento religioso, é também um trabalho de largo
alcance social, com muitos reflexos diretos e positivos na vida de crianças e
adolescentes.
Agora em 2015, próximo
de ser iniciada mais uma Festa de Nossa Senhora das Graças, padroeira de
Messias Targino, infelizmente a senhora teve que nos deixar fisicamente. Será
difícil imaginar que, depois de mais de seis décadas, a Festa de nossa
padroeira não terá a sua presença.
Minha mãe, hoje olho
para trás e vejo que a senhora cumpriu todas as missões que o Senhor Deus lhe
confiou e que ao longo da vida foram aparecendo. Foi mãe exemplar, dedicou meio
século a trabalhos voluntários em prol da Igreja e da comunidade e foi, acima
de tudo, uma dessas pessoas que a gente pode chamar sem meios termos de guerreira, porque lutou bravamente para
superar as adversidades naturais de uma vida pobre e sofrida, sem nunca abaixar
a cabeça, sem nunca perder a dignidade.
Sei que tenho minhas
falhas como filho e como pessoa, mas elas decorrem unicamente da minha condição
humana. Todas as minhas virtudes foram decorrentes do aprendizado, dos valores
e dos conceitos que a senhora, minha mãe, ao longo da minha vida me passou,
sempre com ternura, mas também com o rigor que a ocasião merecesse.
Graças a Deus,
orgulha-me de ainda ser conhecido por várias pessoas como Alcimar de Maria do
Junco, pois, de fato, sempre tive e quero continuar a ter como referência a sua
pessoa, que abre portas, agrega amizades e me faz ser conhecido como uma pessoa
de bem.
Neta de Manoel
Fernandes Jales (Sorinho) e Maria Cândida de Almeida e filha de José Severino de
Souza e Noêmia Maria de Almeida, a senhora, minha mãe, orgulhosamente deixou o
seu nome lançado na ainda recente História desse Município. E o fez sem pompa,
sem dinheiro, mas apenas com seu exemplo de vida e com suas atitudes na
comunidade.
Seus netos João Vítor,
Isac e Maria Rita sempre se orgulharão de saber que um dia tiveram como avó uma
pessoa tão respeitada em seu meio social. Maria Rita, aliás, já é
carinhosamente chamada por nós de Maria do Junco, dada a enorme semelhança física
e de alguns comportamentos semelhantes aos seus.
Seus irmãos que agora
ficam (Rita, Sales e Marinalda) sentirão sua ausência. Dos treze filhos de José
Severino e Noêmia, restam agora esses três.
Como filho, só tenho a
agradecer a Deus por ter me feito nascer de seu ventre e crescer sob seus
cuidados.
Os agradecimentos,
porém, não são só meus. Arrisco-me a dizer que sua filha-sobrinha Elizabete
também diria as mesmas coisas, se a emoção lhe deixasse falar nesse momento. Acredito
que sua sobrinha Eduarda, que sempre lhe chamou de Dadá, pensa o mesmo.
Em seu nome, mamãe,
também quero agradecer a todos aqueles e aquelas que, ao longo desses últimos
cinco anos, ofertaram um pouco do seu tempo para lhe ajudar de alguma forma.
Foram várias as pessoas, e aqui não vou nominar para não incorrer em
injustiças. A todas essas pessoas quero agradecer do fundo do meu coração.
À prima-irmã Elizabete,
de modo bem especial, quero agradecer pelo imenso carinho que lhe dedicou
nesses anos. Sem ela nós não teríamos conseguido enveredar pelas trincheiras
dessa batalha, desumana e desigual.
À comunidade messiense
e aos muitos amigos de Maria do Junco, daqui e de fora, quero agradecer pela
presença e pelas mensagens de carinho manifestadas de diversas formas e por
diferentes meios.
Colhendo o que plantou,
a senhora minha mãe recebe agora essa manifestação de carinho e solidariedade
de uma quantidade imensa de pessoas.
Com a certeza de que
fostes uma humilde e correta serva de Deus; com a certeza de que cumpristes
nessa terra todas as missões que lhe foram dadas; com a certeza de que
plantastes uma semente de amor e de respeito para várias gerações, descanse em
paz, Maria José de Souza, ou simplesmente Maria do Junco. Do alto de sua
misericórdia e com a medida exata da Justiça, o Senhor Deus a receberá e lhe
dará um lugar de repouso em sua morada.
Seu corpo se vai, sua
presença espiritual continuará no meio de nós.
Alcimar Antônio de
Souza
Seu filho
(Texto lido pela professora Maria da Glória Andrade Rocha na missa de corpo presente de Maria José de Souza, celebrada na Capela de Nossa Senhora das Graças, em Messias Targino, em 12 de novembro de 2015)