sexta-feira, 20 de março de 2020

Reminiscências

O cinema na Boate Sândalus

Nas grandes cidades, diminuíram de quantidade as salas de cinema. Geralmente as poucas salas ainda existentes estão acomodadas em grandes centros multi-comerciais, conhecidos como shopping center´s, e somente alguns poucos cinemas fora desses locais continuam em funcionamento pelo País afora.

O início dessa diminuição abrupta das salas de cinema coincidiu com a chegada das locadoras de vídeo ao mercado. Mas estas também desapareceram em razão da oferta do mesmo item de entretenimento - cinema - por tecnologias diversas. A televisão por assinatura e outros serviços eletrônicos ou virtuais colocam à mão da população filmes, séries e documentários, por preços irrisórios e com qualidade indiscutível.

Mas estamos falando de uma realidade presente, quase no final do primeiro quarto do século XXI. Lá atrás, nos anos 70 e 80 do século passado, a realidade era bastante diferente, principalmente para nós, que morávamos na pacata cidade de Messias Targino, distante mais de trezentos quilômetros de Natal, capital do Estado potiguar.

Aparelhos de televisão eram produtos de luxo em algumas residências, e mais das vezes quem tinha o televisor nem podia assistir normalmente à programação do único canal que aparecia, pois o sinal vivia fugindo, e as pessoas donas dessa preciosidade da época comumente tinham que direcionar as antenas de TV para Martins-RN, Brejo do Cruz-PB ou outro Município mais próximo onde houvesse uma repetidora do sinal de TV.

Acesso a cinema? Tínhamos, porém de outro jeito, que chega a dar saudade.

Eu morava na Rua João Jales Dantas, que depois foi batizada de Avenida Genuíno Fernandes Jales. A casa da minha avó, Noêmia, onde morávamos eu e minha mãe juntamente com outros parentes, ficava colada num imóvel de José Dantas Jales, popularmente conhecido por Dedeca Jales, pessoa das mais sérias e das mais honestas que já conheci.

Nesse imóvel, na sua parte de frente, Dedeca Jales mantinha um depósito de bebidas, e um bar logo ao lado, na esquina. A Boate Sândalus ficava com a parte frontal posta no cruzamento da Rua João Jales Dantas com a Rua Desembargador José Vieira (atual Rua Professor Otoniel Tomaz de Almeida), e tinha uma parte maior ao fundo, inclusive com salão para festas.

Nos dias de cinema na cidade, logo cedo se ouvia um carro de som que circulava pelas ruas, anunciando a grande atração cinematográfica que iria ser exibida à noite. Zé Pacamom era quem mais vinha a Messias Targino para nos trazer filmes até então desconhecidos do público messiense.

Ao lado dessa publicidade através do carro de som, o promotor do evento também colocava, em frente à Boate Sândalus, um cartaz que dizia qual seria o filme exibido, quem eram os artistas da fita e qual o horário de início. Dizer o local da exibição nesse cartaz nem era preciso, pois o carro de som já o informava e nós até já o sabíamos. A Boate Sândalus, de Dedeca Jales, seria o palco de mais uma noitada de exibição de um bom filme.

Geralmente Zé Pacamom e os outros “promotores” que também exibiam filmes na cidade traziam clássicos do cinema nacional, e dentre os atores mais estrelados tínhamos Tony Vieira, Cara de Gato, Teixeirinha e “grande elenco”, expressão por sinal sempre utilizada nas chamadas que o próprio promotor do evento fazia ao microfone de sua bem conservada Chevrolet Veraneio ou de uma belíssima Rural.

À tarde, repetia-se o anúncio feito através de carro de som e novamente se colocava em frente à Boate Sândalus o “cartaz do filme”, como costumávamos resumir na indagação que fazíamos entre nós: “Já foi ver o cartaz do filme de hoje?”

À noite, uma parcela significativa da população se dirigia para a Boate Sândalus, para comprar o ingresso e finalmente adentrar naquela sala de cinema, só nossa, para uma noite de muita alegria e entretenimento. Eu nem sempre ia, pois nem sempre dispunha do valor financeiro do ingresso, e noutras vezes o filme exibido era impróprio para menores de idade.

A propósito, como não existia na época a classificação politicamente correta que existe hoje, Dedeca simplesmente proibia todo e qualquer menor de idade a ver esse tipo de fita de cenas mais “assanhadas”, espécie de filme que, em verdade, era uma exceção, pois no geral ficávamos mesmo com os enredos não pornográficos do cinema nacional. E a menoridade na época somente era quebrada aos vinte e um anos.

Salvo engano, o amigo Mulico sempre auxiliava na promoção daquelas noites de exibição da sétima arte na Boate de Dedeca. Encarregava-se da venda dos ingressos ou da sua conferência no momento da entrada, sempre com um sorriso no rosto e a alegria de quem gostava do que fazia.

Quando a película cinematográfica era de exibição proibida para menores de idade, Dedeca Jales, que também foi comissário de menor por longos anos (atualmente seria agente de proteção à infância e à adolescência), encarregava-se o próprio de passar o olho na fila de entrada e barrar quem não tivesse a “idade certa” para assistir ao filme.

Nessa fiscalização de faixa etária, Dedeca nem pedia documentos, pois ele conhecia um a um todos os meninos, meninas, rapazes e moças da comunidade messiense. Botava o olho sobre o sujeito (ou a sujeita) e já tinha a “ficha” completa. Podia ser filho ou filha de quem fosse, que ele mandava dar meia volta acaso não fosse ainda maior de idade, sem fazer qualquer distinção social ou econômica. Era o jeito dele: correto.

Na hora da exibição, um lençol de cor branca amarrado na parede dos fundos da Boate servia como tela, e as fitas do filme iam girando num grande rolo de um velho e já bastante usado projetor. Sentados em tamboretes ou mesmo no chão, nós nos encantávamos com aquilo. Era o que nos havia de mais moderno da sétima arte, que naturalmente já encanta.

Vez por outra se notava que a película havia sido emendada, de tão gasta que já estava, posto que já havia sido exibida dezenas de vezes noutros lugares. Uma emendinha na fita não era problema. Perdia-se apenas um pequeno trecho da produção exibida.

O ruim mesmo era quando a fita se rompia ali, no momento em que as cenas estavam sendo apresentadas. Às vezes Zé Pacamom (ou outro promotor do mesmo evento) conseguia consertar o problema, e o filme continuava sendo exibido, com algum corte de cenas que a nossa imaginação se encarregava de completar.

Entretanto, também acontecia de não ser possível ao dono da fita proceder à emenda, e então a sessão era encerrada antes da hora prevista. Mais contido pelos rigores do aprendizado de Maria do Junco, minha mãe, e temendo que “seu” Dedeca me repreendesse, pois mamãe lhe dava autoridade para tanto, eu não fazia coro às vaias e aos gritos de reprovação que nesse instante tomavam conta do salão da Boate Sândalus. Permanecia calado, mas também ficava revoltado com o término antecipado da sessão.

Todavia, isso era um protesto momentâneo, pontual. Na outra semana, se Zé Pacamom ou outro exibidor de filme voltasse à cidade, e se houvesse recurso financeiro disponível, lá estaríamos nós todos novamente, mais uma vez encantados pela arte do cinema, ali nos trazida sem nenhuma pompa das modernas salas de sessões de hoje, mas capaz de nos proporcionar uma alegria sem igual.

Depois apareceram as antenas parabólicas, e aos poucos foi aumentando o número de televisões nas residências, inclusive na minha. Os carros de som que durante o dia nos convocavam para uma animada sessão cinematográfica foram também desaparecendo. O mercado e a modernidade se encarregaram de nos tirar essa modalidade de entretenimento naquele formato tão provincial mas ao mesmo tempo tão aglutinador de uma comunidade.

Com o passar do tempo, perdemos a sala de cinema da Boate Sândalus, do grande amigo Dedeca Jales.

Mais recentemente, perdemos a presença física de “seu” Dedeca, uma das pessoas mais queridas que Messias Targino já viu.

Ainda bem que nos restaram as lembranças. Vamos então as registrar, antes que os efeitos do tempo as apaguem de nossas memórias.

Deste canto, segue um viva à Boate Sândalus, que hoje funciona, como homenagem, como “Bar do Dedeca”!

Vai também o aplauso silencioso e saudoso à memória de Dedeca Jales, responsável por tornar melhores os dias de infância desse filho de Maria do Junco e de centenas de outros filhos de Messias Targino!

Alcimar Antônio de Souza