A república e o delegado
Messias Targino, como todos os Municípios de menor porte, tem muitas histórias marcantes a serem contadas, geralmente conhecidas de todos ou quase todos porque, até pouco tempo, era uma cidade onde as pessoas praticamente se conheciam por nomes, sobrenomes e apelidos, e talvez até mais por apelidos.
O fato a ser
narrado aconteceu realmente, e seus personagens são todos conhecidos. Por
várias razões, não mencionaremos os nomes, mas apenas o fato. Como se diz por
essas bandas, contaremos o “milagre” sem dizer os “nomes dos santos”.
O século era o
vinte. A década era a de oitenta, entrando para a de noventa. Numa das ruas
mais movimentadas da cidade havia uma “república”, aquele ambiente coletivo que
reúne estudantes. Nesse caso, a república tinha também professores e outros
profissionais. Mas acolhia também estudantes.
Essa turma, nas
horas vagas, gostava de uma boa farra, sempre com muita música, porque
inclusive alguns moradores da república eram (como ainda são) exímios músicos,
cantores e tocadores de instrumentos diversos, principalmente os de corda.
Justamente por
essa alegria permanente, quem chegava à cidade para trabalhar, vindo de outros
lugares, que gostasse dessas confrarias, logo se alinhava aos moradores da
república. A cidade era pacata, o estranho vinha para ela sem família, então, unindo-se
a fome à vontade de comer, tinha-se essa junção dos novos moradores temporários
aos moradores nativos ou mais antigos de Messias Targino.
E foi o que
aconteceu com um certo sargento da Polícia Militar, que era também o delegado
de Polícia do Município porque, na época, com a enorme deficiência do efetivo
da Polícia Civil no Estado, em patamar ainda menor do que o quantitativo das
últimas décadas, os comandantes dos Destacamentos e Pelotões da corporação
castrense eram ao mesmo tempo chefes da PM e autoridades de polícia judiciária
dos respectivos Municípios onde comandavam. Assim, o praça vinha de outro
Município, foi designado para desempenhar em Messias Targino as duas funções:
comandante do Destacamento da PM e delegado de Polícia.
Adepto de uma
boa patuscada, o militar-delegado logo se tornou amigo do pessoal da república
messiense. E, quando não estava a serviço da segurança dos messienses,
juntava-se aos alegres – todos, pessoas de bem, que se diga - moradores daquele
ambiente coletivo em farras sempre tranquilas, inclusive porque ninguém se
arriscaria a pensar em confusão quando um dos farristas era o delegado da
cidade. De fato, a índole dos moradores da república também não era – como
continua não sendo – de pessoas violentas. Do contrário, sempre foram pessoas
de muito bom convívio social.
Porém, naqueles
períodos de maior pobreza coletiva, de mais dificuldades financeiras, dos
chamados tempos mais difíceis de sobrevivência, comprar a bebida e o
acompanhamento alimentar para ela (o popular tira-gosto) era algo que custava um pouco caro. Naquela residência
coletiva, mesmo alguns professores não tinham vencimentos tão elevados, e
outros moradores do lugar, como dito, eram estudantes mesmo.
Nesse contexto, alguns
moradores da república tiveram a ideia de pegar, sorrateiramente, à revelia do
dono, algumas galinhas, existentes numa moradia próxima àquele ambiente
coletivo. Quem é do sertão nordestino sabe que galinha caipira é um dos pratos
mais apreciados por essas bandas. Como tira-gosto
para uma boa farra, são então um luxo de cardápio.
Nesse dia, o
sargento-delegado também estava participando da festinha da república. Era sua
folga, e ele, como de praxe, juntava-se aos moradores da república para aquele
momento de lazer. O detalhe importante é que ele não sabia da intenção de
alguns moradores da república de conseguirem as penosas daquela maneira não
muito correta.
E assim
aconteceu. As aves foram subtraídas na cumplicidade do silêncio coletivo, e os
membros da confraria, inclusive o sargento-delegado, dividiram aquela iguaria,
tudo isso com muita bebida e, principalmente, muita música e conversa jogada
fora.
Mas, repita-se,
o sargento-delegado não tinha conhecimento da origem das galinhas, porque,
logicamente, ninguém iria lhe contar os detalhes da organização do evento
festivo para não ser repreendido.
No dia seguinte,
quando o delegado-sargento já estava de serviço no Destacamento da PM e
Delegacia de Polícia, um cidadão lhe apareceu para fazer uma queixa, requerendo
prontas providências para o caso. Atenciosa, a autoridade policial pediu que o
fato lhe fosse narrado, antes de ser feito o registro da ocorrência.
O cidadão narrou
que criava algumas galinhas caipiras em seu quintal, para venda; que no dia
anterior algumas delas haviam sido subtraídas; e que ele até sabia quem eram os
autores do fato.
O agente de
segurança pública pediu, então, que a vítima informasse quem seriam os
praticantes daquela ação irregular. Contado o fato, identificados os suspeitos
e dito até qual teria sido o provável destino das saborosas aves, o
sargento-delegado então ficou sabendo que ele também havia participado da
comilança daquelas galinhas caipiras. A vítima não sabia que o delegado havia
participado da festinha, mas a autoridade prontamente se recordou.
Somente nesse
instante foi que a autoridade policial se deu conta que havia participado de uma
farra em que o tira-gosto não havia sido adquirido pelos meios normalmente
esperados.
Amigo de todos os
participantes da festa e também comedor das galinhas (mesmo sem saber disso no
ato da farra), o sargento-delegado, para não prejudicar os seus companheiros de
farra, mas também para não deixar de prestar seus serviços públicos, perguntou
ao queixoso se ele aceitaria uma conciliação, comprometendo-se o militar a
procurar os suspeitos indicados pela vítima e lhes propor um acordo que
culminasse no pagamento das aves.
A proposta do
delegado soou como música nos ouvidos da vítima, que no fundo não gostaria de
ver ninguém processado ou preso em razão do desaparecimento de algumas aves, e
que também já criava esses animais no intuito de vendê-los, sendo essa atividade
parte das suas ações de sobrevivência.
A segunda
surpresa do delegado veio quando ele perguntou ao queixoso qual seria o valor
de cada galinha para fins de pagamento ou indenização. Sabendo que os
envolvidos pagariam caro para evitarem um simples comparecimento à Delegacia de
Polícia, a vítima atribuiu a cada galinha caipira quase o preço de mercado de
um peru, ave de maior porte e de maior valor econômico.
“Tudo isso?”,
perguntou o delegado. “É, mas se eles não quiserem pagar, pode botar o assunto
pra frente”, disse o queixoso. Era mero jogo de palavras. Ele queria mesmo o
dinheiro da indenização.
Foi então que o
sargento-delegado, após se comprometer perante a vítima em resolver o problema,
procurou os membros da confraria e relatou o ocorrido. E ponderou: “Vamos
pagar, pra não ter problema”. E o problema seria para ele também.
Sem maiores rodeios,
cada um deu a sua cota e as aves consumidas naquela farra de dias atrás foram
pagas. Habilidoso, o delegado juntou o dinheiro e o entregou, ele mesmo, à
vítima, evitando-se maiores constrangimentos.
Fim das farras da república? De jeito nenhum. O episódio serviu de tema para outras festas seguintes, inclusive com a presença do sargento-delegado, que somente deixou de marcar presença naquele ambiente coletivo quando, tempos depois, foi transferido para servir em outro Município.
Alcimar Antônio de Souza