Reencontros
A minha rebeldia
sem causa de adolescente me fazia pensar que Dia das Mães e Dia dos Pais eram
apenas datas comerciais, criadas para impulsionar as vendas da indústria e do
comércio. Mas a minha sensatez proveniente da maturidade me trouxe um olhar
diferente para essas datas. Em mais um Dia dos Pais, ocorrido recentemente, pus
os pés da alma num terreno composto pela saudade e pelas lembranças de toda uma
vida, e caminhei pela estrada das recordações que nos fazem bem.
O caminho
imaginário trilhado é o da reflexão, que me leva a reencontros. E o primeiro
destes é com meu pai, justamente em razão da data alusiva aos pais.
O ano era 1988. Eu
tinha dezesseis anos de idade quando recebi a notícia da morte do meu pai, José
Antônio Filho. Apesar da idade de adolescente, ou talvez em função dela, naquele
momento não compreendi a exatidão daquela perda, nem as suas consequências
reais na vida de um filho. E isso em muito se explicava pelo fato de eu ter
sido criado sem a presença física do mau pai desde os quatro ou cinco anos de
idade, quando ele e a minha mãe, Maria José de Souza, ou Maria do Junco,
separaram-se em definitivo.
José Antônio
Filho, filho de José Antônio de Oliveira e Antônia Sebastiana de Jesus,
ingressou nos quadros da Polícia Militar do Rio Grande do Norte e saiu da sua
terra natal, Jaçanã, na região do Trairi potiguar, para trabalhar na região
Oeste do Estado. Em Patu, o soldado Filho (seu nome de guerra na corporação) conheceu
a então candidata a noviça Maria José de Souza, que até então frequentava
conventos e se acompanhava com muita frequência de muitas religiosas, no
trabalho voluntário que realizava a serviço da Igreja Católica.
Os dois se casaram
e moraram inicialmente em Patu, em vários endereços diferentes. A casa estava
sempre cheia, pois abrigava parentes e amigos que deixavam Messias Targino para
buscar a continuidade dos estudos na cidade de Patu. Se mamãe os acolheu bem,
papai também os acolheu assim, pois carregava consigo – e isso ouvi de todos os
que moravam com eles – um jeito fácil de fazer amizade e de se relacionar com
as pessoas. A propósito, a família de mamãe logo o recebeu de braços abertos, e
ele se fez de acolhido desde cedo.
Além dos parentes
e amigos que buscaram a casa de papai e mamãe em Patu para estudar, os dois
também tomaram como “filhas” Rita Dalvacir (“Pequena”, de Patu) e Lindalva (de
Messias Targino), pessoas a quem ainda hoje me dirijo como irmãs.
A serviço da
Polícia Militar, meu pai foi transferido para trabalhar em Natal. Fomos juntos,
eu e minha mãe. Até então, éramos essa família. As poucas lembranças da tenra idade,
complementadas pelos relatos que ouvi ao longo de décadas, fazem-me saber que
fomos residir numa pequena casa localizada nos fundos do imóvel residencial do
professor Júlio Benedito, educador messience que depois deu nome à principal
escola do Município.
A estadia na
capital potiguar durou pouco tempo. O casal se separou. Papai voltou para
Jaçanã, onde tinha grande – e excelente – família, e mamãe e eu voltamos para o
Oeste norte-rio-grandense. Passamos a morar em Messias Targino. Eu tinha entre
quatro e cinco anos de idade.
A partir de então,
perdemos o contato – eu e meu pai -, pois as condições financeiras de cada um
(da minha mãe e dele) não permitiam um convívio mais próximo entre pai e filho,
afinal, Jaçanã e Messias Targino estão razoavelmente distantes. E aqueles anos
de maior dureza financeira para a imensa maioria do povo mais pobre do sertão
nordestino não permitiam muitos projetos de vida além do esforço permanente de
tentar sobreviver. Viajar para longe, então, era quase um artigo de luxo.
Ser criado sem pai
(e não era culpa dele) não é situação das melhores, ao menos para um
sentimentalista romântico como eu, notadamente numa sociedade que, há quatro
décadas atrás, era ainda mais patriarcal e cheia de preconceitos.
Mesmo com tantas
dificuldades, lembro-me que meu pai veio a Messias Targino uma ou duas vezes,
para me ver.
Um registro devo
fazer: apesar da pouca instrução escolar, a minha mãe nunca falou mal de meu
pai para mim, e nunca permitiu que o fizessem. Nem havia motivos, nem ela
deixou que comentários da espécie aumentassem ainda mais a lonjura que já
existia entre pai e filho.
Outro registro
também devo fazer: a minha mãe, sabedora de que a distância corrói os laços afetivos,
mesmo aqueles que devem existir entre pai e filho, passou a me levar a Jaçanã,
para ver o meu pai e a minha família paterna, a cada dois ou três anos. O
intervalo de tempo geralmente coincidia com o intervalo de chuvas nesse sertão
de meu Deus, afinal, em tempos de bonança (ou de chuvas abundantes), existia
também significativa melhoria em nossas condições de vida, com um aumento de
esperança para se escapar das estiagens que certamente viriam mais adiante, nos
anos seguintes.
Saíamos de Messias
Targino para embarcar num ônibus da empresa Jardinense que passava por Patu,
vindo de Pau dos Ferros, rumo a Natal, atravessando parte da Paraíba e quase
todo o Seridó potiguar. Descíamos em Santa Cruz, já na região do Trairi, onde
esperávamos outro ônibus, vindo de Natal, direto para Jaçanã.
O embarque nesse
segundo ônibus me fazia uma criança (e mais tarde um adolescente) ainda mais
feliz. A ideia de ver a minha outra família alegrava o meu coração. A paisagem existente
na serra, de muito verde, inclusive dos muitos campos de sisal (que já não
existem por lá), pintava em cores os meus pensamentos. Chegar a Coronel
Ezequiel era a certeza de que, em minutos, estaríamos entrando pela via
principal de Jaçanã.
Ao chegarmos ao
destino, a partir da segunda viagem, eu já sabia que, na principal parada do
ônibus, num cruzamento de duas ruas bastante largas, andaríamos a pé por uma
pequena distância, e chegaríamos à casa de tia Mercês (irmã de papai) e tio Zé
dos Santos (esposo de tia Mercês, a quem sempre chamei de tio), na Vila Nossa
Senhora de Fátima, em Jaçanã.
Ali começavam
vinte ou trinta dias de reencontro com a outra parte de mim, com as raízes
familiares advindas do ex-soldado Filho. Nesse período, visitávamos meus tios,
tias, primos e primas, espalhados por Jaçanã e também em Nova Floresta, no
vizinho Estado da Paraíba.
Meu pai, que havia
deixado as fileiras da corporação castrense, nem sempre estava em Jaçanã, pois
saía bastante para trabalhar em outros lugares. Quando estava, tínhamos um
reencontro. Mas confesso que a distância geográfica e o enorme lapso temporal
sem contato, aliados à minha pouca idade, tornavam esses reencontros uns
momentos de poucas conversas, de poucos abraços. E isso não era culpa minha,
nem dele; certamente da distância e do tempo que nos separavam; ou do destino,
quem sabe.
Em Jaçanã, um dos
destinos mais esperados por mim era a visita ao Sítio Gurjaú, onde moraram por
décadas meu avô José Antônio de Oliveira, popularmente conhecido por José Polucena
(ou Pulucena), e minha avó Antônia Sebastiana de Jesus.
Meu convívio
esporádico (nós nos víamos a cada dois ou três anos) era com a minha avó, pois
nesse período meu avô paterno já não estava entre nós. E minha avó Antônia
Sebastiana estava entre os seres humanos mais doces e amáveis que já conheci na
vida. E isso pode parecer redundância, pois os avós, em geral, já são criaturas
doces em relação aos netos. E, mesmo aparecendo apenas a cada dois ou três
anos, eu recebia da minha avó Antônia um carinho que parecia ter sido guardado
pelo tempo de espera, entregue de uma só vez em poucos dias de convívio. O
sentimento represado de parte a parte transbordava em poucos dias, como um
açude do sertão que espera a chuva de dois ou três para somente depois atingir
a sua cota de armazenamento de água.
O sítio era
pequeno. Grande mesmo era a generosidade da minha avó. A depender da época do
ano em que fôssemos para lá, encontraríamos, além da acolhida calorosa, muitas
frutas, pois no pequeno imóvel rural havia mangueiras, cajueiros, jaqueiras,
goiabeiras e, ainda me recordo, uns poucos “pés de café”.
Afora o carinho, a
minha avó me presenteava com beijus cujo sabor ainda não encontrei em outros
beijus que provei em outros lugares). E, não raro, trazia-me uma pequena bacia
com mangas colhidas no dia. O cheiro não era propriamente das mangas. Elas
exalavam todo aquele amor que apenas uma avó é capaz de dar a um neto. E penso
que certamente eu estava longe de ser o seu preferido, pois havia outros,
inclusive mais velhos, que estavam o ano todo mais pertos dela. Nem por isso eu
deixava de ser agraciado com essa porção inesgotável de afeto que uma avó sabe
dar a um neto.
Um dos momentos
mais marcantes para aquele garoto que pouco conhecia do mundo foi fazer uma viagem
com a minha avó Antônia Sebastiana até a cidade de Cuité, na Paraíba, a bordo
de um caminhão antigo do tipo misto, de boleia maior que o habitual e de
carroceira imensa, que ia cheia de agave (sisal), outras mercadorias e muita
gente, inclusive eu, mamãe, e minha avó. Era um dia de realização da feira
popular em Cuité, e ali passamos parte do dia.
Em razão da idade
avançada e dos cuidados que isto requer, a minha avó foi morar na cidade, em
Jaçanã, e ainda me lembro de tê-la visitado em sua nova morada, onde o
acolhimento era o mesmo. Já não existia aquele pomar sob o qual eu brincava
quando era criança, mas o amor de avó continuava intacto.
Em Jaçanã, fiquei
hospedado mais vezes na casa de tia Mercês e tio Zé dos Santos. Mas também
fiquei em casas de outros parentes, que igualmente me receberam com a mesma
fidalguia.
O tempo passou. A
vida nos exigiu obrigações. Os caminhos nos levaram para ainda mais distantes
uns dos outros. Acredito que isso acontece com quase todo mundo. Depois de
muito tempo, fiz duas viagens sozinho para Jaçanã: fui a Santa Cruz para um
trabalho, e de lá subi a serra. Outra vez, com tristeza, fui para o
sepultamento da minha avó Antônia Sebastiana.
Durante toda a
infância e adolescência, nos anos em que não íamos visitar os parentes
paternos, mamãe mantinha a comunicação através de cartas. O único telefone
disponível em Messias Targino era o do Posto da Telern, de uso comunitário. E a
tarifa não era tão barata. Era melhor usar um dos mais antigos meios de
comunicação entre as pessoas: as cartas. Mamãe dizia o que queria comunicar, e
eu era nomeado seu escrevente.
Como marca
indelével do meu pai, José Antônio Filho, herdei a aparência física, e, segundo
o contador Miguel Arcanjo de Almeida Filho, amigo de papai, herdei também o
jeito geralmente mais calmo de falar.
De fato, essa
enorme semelhança física está num dos raros registros de família, precisamente
num retrato que por anos ficou na parede da casa de mamãe, que, mesmo separada
de papai, fez questão de manter o quadro.
E a aparência, que
me faz muito bem enquanto pessoa, pois mostra de onde vim, também me foi dita
em algumas ocasiões. Tia Mercês, de saudosa memória, brincou comigo até quando
eu já estava adulto. Costumava pegar nas minhas bochechas, dizendo que eram
parecidas com as de papai, para depois me dar na face um beijo carinhoso que
mais parecia o beijo de uma mãe, de tanto que ela gostava de mim.
Certa vez íamos
para o Sítio Gurjaú, a pé, em estradas carroçais ladeadas por plantações de
agave e muitas árvores frutíferas. Ao passarmos em frente a uma casa, ouvi
quando alguém, à porta, comentou: “É o filho de Zezinho”. Zezinho Polucena, ou
simplesmente Zezinho, era como meu pai era conhecido em Jaçanã. Filho (do
soldado Filho) era como ele era conhecido por essas bandas do Oeste potiguar. E
eu nunca havia visto aquela pessoa, e, pelos comentários da família, ela também
nunca havia me visto antes. O fato de eu estar entre familiares do meu pai e,
certamente, a minha aparência idêntica, fizeram-na concluir que eu também tinha
raízes fincadas naquele chão.
Outra vez eu
voltava de Mossoró para Patu, já homem feito, e, ao passar por Caraúbas, vi que
um policial militar da reserva, na época a serviço da Guarda Patrimonial criada
para colocar em atividade militares da reserva, esperava uma condução. Pela
farda e pela idade do senhor, parei e ofereci a carona. Uns metros à frente
iniciamos um diálogo. Ele me disse que, quando esteve na ativa, há décadas,
havia sido lotado na Companhia de Polícia Militar de Patu. Alegre, eu lhe disse
que o meu pai também havia sido lotado naquela unidade. Sem que desse tempo de
eu lhe dizer o nome, ele me reconheceu (ou reconheceu meu pai), dizendo-me:
“Você é filho do soldado Filho”. A surpresa me arrepiou os pelos, mas também me
deixou imensamente feliz.
O tempo, que traz
maturidade, traz também distanciamento. Só não pode nos trazer o esquecimento
de pessoas importantes, valores relevantes, momentos que nos marcaram. E foi
justamente porque nunca esqueci as minhas raízes paternas que, depois de duas
décadas, voltei a Jaçanã em 2019. Deus, a quem se atribui popularmente o dom de
escrever certo por linhas tortas, pôs em minha frente um motivo profissional
para voltar a Jaçanã. Fiz disso uma grande ocasião para rever os familiares
paternos. Estiquei a estadia por alguns dias, e, na medida do possível, fui a
diversas casas Entre conversas e abraços, tive reencontros que me encheram de
emoção.
Ainda deu tempo de
ver tia Mercês, que já não está entre nós e que, pelo bem que fez na terra,
certamente recebeu do Senhor Deus um lugar precioso no Reino dos Céus. Outros
tios e tias paternos igualmente já não estão nesse mundo. A eles e elas, devo
muito, de tanto carinho e tantos aprendizados recebidos, mesmo que a cada dois
ou três anos, mesmo que por tão pouco tempo de convivência.
Depois de mais de
duas décadas sem vista presencial, as primas Neide e Maria das Graças passaram
rapidamente em Patu. Pude vê-las e diminuir a saudade. Isso ocorreu antes de eu
retornar a Jaçanã no ano de 2019.
E, como dito, voltei
a Jaçanã em 2019. Levei comigo a esposa Elizângela e a filha mais nova Maria
Rita. Fui outra vez ao cenário de grande parte da minha infância e da minha
adolescência. No retorno para casa, em 2019, chorei silenciosamente, como o
fazia quando era criança ou adolescente a cada despedida.
Pouco tempo
depois, já durante a pandemia do novo coronavírus, recebi a triste notícia da
morte de minha tia Mercês.
Passada a pandemia
da Covid-19, fui novamente a Jaçanã, e desta vez levei comigo também o filho
mais velho, João Vítor. Apresentei-o a grande parte da família do meu pai.
A tecnologia tem
nos permitido um contato remoto frequente, o que significa muito para mim,
pois, se tenho orgulho das origens maternas (Almeida, Tomaz, Fernandes, Jales e
Souza), tenho também muito orgulho das minhas origens paternas, considerando-me
um autêntico Oliveira ou Polucena.
Como parte desse
orgulho, eu pretendia dar o nome de José Antônio a um possível filho, que foi
concebido no ventre de Elizângela no ano de 2024, cuja gravidez infelizmente
foi interrompida por causas naturais ainda no início. Avisei: Se for menino,
terá o nome de José Antônio, em justa homenagem ao meu pai e ao meu avô paterno.
Não foi possível, e não fui questionar os desígnios de Deus.
Se Deus assim
permitir, pretendo voltar a Jaçanã outras vezes. O relógio natural da vida
aponta agora com muita ênfase uma contagem regressiva de tempo, cada vez mais
curto. Como dizia o amigo, poeta e grande advogado Ribamar Ferreira de Lima, de
saudosa memória, “dobramos o Cabo da Boa Esperança”. Então, é preciso estarmos
ao lado dos nossos enquanto o ponteiro desse relógio ainda tem – imagino –
voltas a concluir.
Em dias de hoje,
talvez uma ou outra pessoa menos conhecedora do assunto até remetesse toda essa
abordagem do tema a uma possível questão de saúde mental, sob o argumento de possivelmente
existirem cicatrizes de feridas curadas lentamente pelo tempo, que ainda
estariam com aquela “casquinha” de pele pronta para ser tirada com as mãos, já
sem dor, como fazíamos quando crianças. Particularmente, posso dizer que se
trata mesmo de mistura de saudade com necessidade de falar um pouco sobre meu
pai e tudo o que vem da parte dele, motivado pela passagem recente do Dia dos
Pais, que abriu para mim, cristão-católico, as celebrações da Semana da
Família, agora encerrada.
Mais que isso,
senti a necessidade de voltar no tempo. De fato, se fosse possível um efetivo
retorno no tempo, com o entendimento dos fatos como agora o tenho, talvez eu
pediria desculpas a meu pai pela não compreensão de tudo; certamente eu lhe pediria
um abraço, abraço este que me fez muita falta ao longo de décadas.
E, de frente para
aquela simpatia que era Zezinho Polucena (ou Filho, para nós), eu teria muito
orgulho de lhe apresentar os netos: João Vitor, Clara Beatriz, Isac Pablo e
Maria Rita.
Saudade de você,
meu pai!
Alcimar Antônio de
Souza
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