domingo, 24 de agosto de 2025

Origens

Reencontros

A minha rebeldia sem causa de adolescente me fazia pensar que Dia das Mães e Dia dos Pais eram apenas datas comerciais, criadas para impulsionar as vendas da indústria e do comércio. Mas a minha sensatez proveniente da maturidade me trouxe um olhar diferente para essas datas. Em mais um Dia dos Pais, ocorrido recentemente, pus os pés da alma num terreno composto pela saudade e pelas lembranças de toda uma vida, e caminhei pela estrada das recordações que nos fazem bem.

O caminho imaginário trilhado é o da reflexão, que me leva a reencontros. E o primeiro destes é com meu pai, justamente em razão da data alusiva aos pais.

O ano era 1988. Eu tinha dezesseis anos de idade quando recebi a notícia da morte do meu pai, José Antônio Filho. Apesar da idade de adolescente, ou talvez em função dela, naquele momento não compreendi a exatidão daquela perda, nem as suas consequências reais na vida de um filho. E isso em muito se explicava pelo fato de eu ter sido criado sem a presença física do mau pai desde os quatro ou cinco anos de idade, quando ele e a minha mãe, Maria José de Souza, ou Maria do Junco, separaram-se em definitivo.

José Antônio Filho, filho de José Antônio de Oliveira e Antônia Sebastiana de Jesus, ingressou nos quadros da Polícia Militar do Rio Grande do Norte e saiu da sua terra natal, Jaçanã, na região do Trairi potiguar, para trabalhar na região Oeste do Estado. Em Patu, o soldado Filho (seu nome de guerra na corporação) conheceu a então candidata a noviça Maria José de Souza, que até então frequentava conventos e se acompanhava com muita frequência de muitas religiosas, no trabalho voluntário que realizava a serviço da Igreja Católica.

Os dois se casaram e moraram inicialmente em Patu, em vários endereços diferentes. A casa estava sempre cheia, pois abrigava parentes e amigos que deixavam Messias Targino para buscar a continuidade dos estudos na cidade de Patu. Se mamãe os acolheu bem, papai também os acolheu assim, pois carregava consigo – e isso ouvi de todos os que moravam com eles – um jeito fácil de fazer amizade e de se relacionar com as pessoas. A propósito, a família de mamãe logo o recebeu de braços abertos, e ele se fez de acolhido desde cedo.

Além dos parentes e amigos que buscaram a casa de papai e mamãe em Patu para estudar, os dois também tomaram como “filhas” Rita Dalvacir (“Pequena”, de Patu) e Lindalva (de Messias Targino), pessoas a quem ainda hoje me dirijo como irmãs.

A serviço da Polícia Militar, meu pai foi transferido para trabalhar em Natal. Fomos juntos, eu e minha mãe. Até então, éramos essa família. As poucas lembranças da tenra idade, complementadas pelos relatos que ouvi ao longo de décadas, fazem-me saber que fomos residir numa pequena casa localizada nos fundos do imóvel residencial do professor Júlio Benedito, educador messience que depois deu nome à principal escola do Município.

A estadia na capital potiguar durou pouco tempo. O casal se separou. Papai voltou para Jaçanã, onde tinha grande – e excelente – família, e mamãe e eu voltamos para o Oeste norte-rio-grandense. Passamos a morar em Messias Targino. Eu tinha entre quatro e cinco anos de idade.

A partir de então, perdemos o contato – eu e meu pai -, pois as condições financeiras de cada um (da minha mãe e dele) não permitiam um convívio mais próximo entre pai e filho, afinal, Jaçanã e Messias Targino estão razoavelmente distantes. E aqueles anos de maior dureza financeira para a imensa maioria do povo mais pobre do sertão nordestino não permitiam muitos projetos de vida além do esforço permanente de tentar sobreviver. Viajar para longe, então, era quase um artigo de luxo.

Ser criado sem pai (e não era culpa dele) não é situação das melhores, ao menos para um sentimentalista romântico como eu, notadamente numa sociedade que, há quatro décadas atrás, era ainda mais patriarcal e cheia de preconceitos.

Mesmo com tantas dificuldades, lembro-me que meu pai veio a Messias Targino uma ou duas vezes, para me ver.

Um registro devo fazer: apesar da pouca instrução escolar, a minha mãe nunca falou mal de meu pai para mim, e nunca permitiu que o fizessem. Nem havia motivos, nem ela deixou que comentários da espécie aumentassem ainda mais a lonjura que já existia entre pai e filho.

Outro registro também devo fazer: a minha mãe, sabedora de que a distância corrói os laços afetivos, mesmo aqueles que devem existir entre pai e filho, passou a me levar a Jaçanã, para ver o meu pai e a minha família paterna, a cada dois ou três anos. O intervalo de tempo geralmente coincidia com o intervalo de chuvas nesse sertão de meu Deus, afinal, em tempos de bonança (ou de chuvas abundantes), existia também significativa melhoria em nossas condições de vida, com um aumento de esperança para se escapar das estiagens que certamente viriam mais adiante, nos anos seguintes.

Saíamos de Messias Targino para embarcar num ônibus da empresa Jardinense que passava por Patu, vindo de Pau dos Ferros, rumo a Natal, atravessando parte da Paraíba e quase todo o Seridó potiguar. Descíamos em Santa Cruz, já na região do Trairi, onde esperávamos outro ônibus, vindo de Natal, direto para Jaçanã.

O embarque nesse segundo ônibus me fazia uma criança (e mais tarde um adolescente) ainda mais feliz. A ideia de ver a minha outra família alegrava o meu coração. A paisagem existente na serra, de muito verde, inclusive dos muitos campos de sisal (que já não existem por lá), pintava em cores os meus pensamentos. Chegar a Coronel Ezequiel era a certeza de que, em minutos, estaríamos entrando pela via principal de Jaçanã.

Ao chegarmos ao destino, a partir da segunda viagem, eu já sabia que, na principal parada do ônibus, num cruzamento de duas ruas bastante largas, andaríamos a pé por uma pequena distância, e chegaríamos à casa de tia Mercês (irmã de papai) e tio Zé dos Santos (esposo de tia Mercês, a quem sempre chamei de tio), na Vila Nossa Senhora de Fátima, em Jaçanã.

Ali começavam vinte ou trinta dias de reencontro com a outra parte de mim, com as raízes familiares advindas do ex-soldado Filho. Nesse período, visitávamos meus tios, tias, primos e primas, espalhados por Jaçanã e também em Nova Floresta, no vizinho Estado da Paraíba.

Meu pai, que havia deixado as fileiras da corporação castrense, nem sempre estava em Jaçanã, pois saía bastante para trabalhar em outros lugares. Quando estava, tínhamos um reencontro. Mas confesso que a distância geográfica e o enorme lapso temporal sem contato, aliados à minha pouca idade, tornavam esses reencontros uns momentos de poucas conversas, de poucos abraços. E isso não era culpa minha, nem dele; certamente da distância e do tempo que nos separavam; ou do destino, quem sabe.

Em Jaçanã, um dos destinos mais esperados por mim era a visita ao Sítio Gurjaú, onde moraram por décadas meu avô José Antônio de Oliveira, popularmente conhecido por José Polucena (ou Pulucena), e minha avó Antônia Sebastiana de Jesus.

Meu convívio esporádico (nós nos víamos a cada dois ou três anos) era com a minha avó, pois nesse período meu avô paterno já não estava entre nós. E minha avó Antônia Sebastiana estava entre os seres humanos mais doces e amáveis que já conheci na vida. E isso pode parecer redundância, pois os avós, em geral, já são criaturas doces em relação aos netos. E, mesmo aparecendo apenas a cada dois ou três anos, eu recebia da minha avó Antônia um carinho que parecia ter sido guardado pelo tempo de espera, entregue de uma só vez em poucos dias de convívio. O sentimento represado de parte a parte transbordava em poucos dias, como um açude do sertão que espera a chuva de dois ou três para somente depois atingir a sua cota de armazenamento de água.

O sítio era pequeno. Grande mesmo era a generosidade da minha avó. A depender da época do ano em que fôssemos para lá, encontraríamos, além da acolhida calorosa, muitas frutas, pois no pequeno imóvel rural havia mangueiras, cajueiros, jaqueiras, goiabeiras e, ainda me recordo, uns poucos “pés de café”.

Afora o carinho, a minha avó me presenteava com beijus cujo sabor ainda não encontrei em outros beijus que provei em outros lugares). E, não raro, trazia-me uma pequena bacia com mangas colhidas no dia. O cheiro não era propriamente das mangas. Elas exalavam todo aquele amor que apenas uma avó é capaz de dar a um neto. E penso que certamente eu estava longe de ser o seu preferido, pois havia outros, inclusive mais velhos, que estavam o ano todo mais pertos dela. Nem por isso eu deixava de ser agraciado com essa porção inesgotável de afeto que uma avó sabe dar a um neto.

Um dos momentos mais marcantes para aquele garoto que pouco conhecia do mundo foi fazer uma viagem com a minha avó Antônia Sebastiana até a cidade de Cuité, na Paraíba, a bordo de um caminhão antigo do tipo misto, de boleia maior que o habitual e de carroceira imensa, que ia cheia de agave (sisal), outras mercadorias e muita gente, inclusive eu, mamãe, e minha avó. Era um dia de realização da feira popular em Cuité, e ali passamos parte do dia.

Em razão da idade avançada e dos cuidados que isto requer, a minha avó foi morar na cidade, em Jaçanã, e ainda me lembro de tê-la visitado em sua nova morada, onde o acolhimento era o mesmo. Já não existia aquele pomar sob o qual eu brincava quando era criança, mas o amor de avó continuava intacto.

Em Jaçanã, fiquei hospedado mais vezes na casa de tia Mercês e tio Zé dos Santos. Mas também fiquei em casas de outros parentes, que igualmente me receberam com a mesma fidalguia.

O tempo passou. A vida nos exigiu obrigações. Os caminhos nos levaram para ainda mais distantes uns dos outros. Acredito que isso acontece com quase todo mundo. Depois de muito tempo, fiz duas viagens sozinho para Jaçanã: fui a Santa Cruz para um trabalho, e de lá subi a serra. Outra vez, com tristeza, fui para o sepultamento da minha avó Antônia Sebastiana.

Durante toda a infância e adolescência, nos anos em que não íamos visitar os parentes paternos, mamãe mantinha a comunicação através de cartas. O único telefone disponível em Messias Targino era o do Posto da Telern, de uso comunitário. E a tarifa não era tão barata. Era melhor usar um dos mais antigos meios de comunicação entre as pessoas: as cartas. Mamãe dizia o que queria comunicar, e eu era nomeado seu escrevente.

Como marca indelével do meu pai, José Antônio Filho, herdei a aparência física, e, segundo o contador Miguel Arcanjo de Almeida Filho, amigo de papai, herdei também o jeito geralmente mais calmo de falar.

De fato, essa enorme semelhança física está num dos raros registros de família, precisamente num retrato que por anos ficou na parede da casa de mamãe, que, mesmo separada de papai, fez questão de manter o quadro.

E a aparência, que me faz muito bem enquanto pessoa, pois mostra de onde vim, também me foi dita em algumas ocasiões. Tia Mercês, de saudosa memória, brincou comigo até quando eu já estava adulto. Costumava pegar nas minhas bochechas, dizendo que eram parecidas com as de papai, para depois me dar na face um beijo carinhoso que mais parecia o beijo de uma mãe, de tanto que ela gostava de mim.

Certa vez íamos para o Sítio Gurjaú, a pé, em estradas carroçais ladeadas por plantações de agave e muitas árvores frutíferas. Ao passarmos em frente a uma casa, ouvi quando alguém, à porta, comentou: “É o filho de Zezinho”. Zezinho Polucena, ou simplesmente Zezinho, era como meu pai era conhecido em Jaçanã. Filho (do soldado Filho) era como ele era conhecido por essas bandas do Oeste potiguar. E eu nunca havia visto aquela pessoa, e, pelos comentários da família, ela também nunca havia me visto antes. O fato de eu estar entre familiares do meu pai e, certamente, a minha aparência idêntica, fizeram-na concluir que eu também tinha raízes fincadas naquele chão.

Outra vez eu voltava de Mossoró para Patu, já homem feito, e, ao passar por Caraúbas, vi que um policial militar da reserva, na época a serviço da Guarda Patrimonial criada para colocar em atividade militares da reserva, esperava uma condução. Pela farda e pela idade do senhor, parei e ofereci a carona. Uns metros à frente iniciamos um diálogo. Ele me disse que, quando esteve na ativa, há décadas, havia sido lotado na Companhia de Polícia Militar de Patu. Alegre, eu lhe disse que o meu pai também havia sido lotado naquela unidade. Sem que desse tempo de eu lhe dizer o nome, ele me reconheceu (ou reconheceu meu pai), dizendo-me: “Você é filho do soldado Filho”. A surpresa me arrepiou os pelos, mas também me deixou imensamente feliz.

O tempo, que traz maturidade, traz também distanciamento. Só não pode nos trazer o esquecimento de pessoas importantes, valores relevantes, momentos que nos marcaram. E foi justamente porque nunca esqueci as minhas raízes paternas que, depois de duas décadas, voltei a Jaçanã em 2019. Deus, a quem se atribui popularmente o dom de escrever certo por linhas tortas, pôs em minha frente um motivo profissional para voltar a Jaçanã. Fiz disso uma grande ocasião para rever os familiares paternos. Estiquei a estadia por alguns dias, e, na medida do possível, fui a diversas casas Entre conversas e abraços, tive reencontros que me encheram de emoção.

Ainda deu tempo de ver tia Mercês, que já não está entre nós e que, pelo bem que fez na terra, certamente recebeu do Senhor Deus um lugar precioso no Reino dos Céus. Outros tios e tias paternos igualmente já não estão nesse mundo. A eles e elas, devo muito, de tanto carinho e tantos aprendizados recebidos, mesmo que a cada dois ou três anos, mesmo que por tão pouco tempo de convivência.

Depois de mais de duas décadas sem vista presencial, as primas Neide e Maria das Graças passaram rapidamente em Patu. Pude vê-las e diminuir a saudade. Isso ocorreu antes de eu retornar a Jaçanã no ano de 2019.

E, como dito, voltei a Jaçanã em 2019. Levei comigo a esposa Elizângela e a filha mais nova Maria Rita. Fui outra vez ao cenário de grande parte da minha infância e da minha adolescência. No retorno para casa, em 2019, chorei silenciosamente, como o fazia quando era criança ou adolescente a cada despedida.

Pouco tempo depois, já durante a pandemia do novo coronavírus, recebi a triste notícia da morte de minha tia Mercês.

Passada a pandemia da Covid-19, fui novamente a Jaçanã, e desta vez levei comigo também o filho mais velho, João Vítor. Apresentei-o a grande parte da família do meu pai.

A tecnologia tem nos permitido um contato remoto frequente, o que significa muito para mim, pois, se tenho orgulho das origens maternas (Almeida, Tomaz, Fernandes, Jales e Souza), tenho também muito orgulho das minhas origens paternas, considerando-me um autêntico Oliveira ou Polucena.

Como parte desse orgulho, eu pretendia dar o nome de José Antônio a um possível filho, que foi concebido no ventre de Elizângela no ano de 2024, cuja gravidez infelizmente foi interrompida por causas naturais ainda no início. Avisei: Se for menino, terá o nome de José Antônio, em justa homenagem ao meu pai e ao meu avô paterno. Não foi possível, e não fui questionar os desígnios de Deus.

Se Deus assim permitir, pretendo voltar a Jaçanã outras vezes. O relógio natural da vida aponta agora com muita ênfase uma contagem regressiva de tempo, cada vez mais curto. Como dizia o amigo, poeta e grande advogado Ribamar Ferreira de Lima, de saudosa memória, “dobramos o Cabo da Boa Esperança”. Então, é preciso estarmos ao lado dos nossos enquanto o ponteiro desse relógio ainda tem – imagino – voltas a concluir.

Em dias de hoje, talvez uma ou outra pessoa menos conhecedora do assunto até remetesse toda essa abordagem do tema a uma possível questão de saúde mental, sob o argumento de possivelmente existirem cicatrizes de feridas curadas lentamente pelo tempo, que ainda estariam com aquela “casquinha” de pele pronta para ser tirada com as mãos, já sem dor, como fazíamos quando crianças. Particularmente, posso dizer que se trata mesmo de mistura de saudade com necessidade de falar um pouco sobre meu pai e tudo o que vem da parte dele, motivado pela passagem recente do Dia dos Pais, que abriu para mim, cristão-católico, as celebrações da Semana da Família, agora encerrada.

Mais que isso, senti a necessidade de voltar no tempo. De fato, se fosse possível um efetivo retorno no tempo, com o entendimento dos fatos como agora o tenho, talvez eu pediria desculpas a meu pai pela não compreensão de tudo; certamente eu lhe pediria um abraço, abraço este que me fez muita falta ao longo de décadas.

E, de frente para aquela simpatia que era Zezinho Polucena (ou Filho, para nós), eu teria muito orgulho de lhe apresentar os netos: João Vitor, Clara Beatriz, Isac Pablo e Maria Rita.

Saudade de você, meu pai!

Alcimar Antônio de Souza


domingo, 26 de janeiro de 2025

Origens

Recordações de uma vida

A casa humilde situada na rua principal de Messias Targino, onde passei a maior parte da infância e da adolescência, estava localizada entre a Boate Sândalus, de Dedeca Jales, depois arrendada a Francisco Borges de Andrade, e um bar, que teve vários proprietários, sendo Francimar Borges de Andrade aquele que mais tempo ficou no local.

Quando a Boate Sândalus estava sob a direção do amigo Dedeca Jales, de saudosa memória, tínhamos na sua lista de músicas os clássicos cantados por Altemar Dutra, Nelson Gonçalves, Roberto Carlos, e muitos outros.

Antes de chegar à Boate Sândalus, Francisco Borges explorou por muito tempo o bar Chapéu da Bruxa, localizado ao lado da Boate Sândalus, cujo som também se espalhava nas noites de sábado e domingo até perto da minha casa, a depender da direção do vento.

Com Borges à frente do bar Chapéu da Bruxa ou mesmo dirigindo a Boate Sândalus, houve mudança no leque de variedades musicais, inclusive porque os anos oitenta do século passado foram de muita euforia musical, com agigantada produção da chamada música popular brasileira e de vários ritmos, como pop, rock (internacional e nacional) e uma enxurrada de artistas e bandas da Bahia. Nos anos noventa, um novo pagode, com sotaque eletrônico, mas sem perder a essência, também se ouvia pelas caixas de som da Boate Sândalus.

Nos anos setenta e oitenta do século passado, aos domingos, bares espalhados ao longo do Mercado Público tocavam clássicos da música brega e do forró de então, alguns deles usando pequenas radiolas cujas tampas funcionavam como caixas de som. A sonoridade peculiar dos discos de vinil ecoava pelas ruas do Centro de Messias Targino.

Já nos anos noventa do século passado, se não me falha a memória, os irmãos Francimar e Borges, donos da Discoteca Irmãos Borges, que se apresentava em Messias Targino e em toda a região, trataram de abrir o Recantus Bar. A variedade musical era igualmente boa, e os equipamentos potentes de som levavam aquela diversidade musical pelas ruas da cidade, sempre aos sábados e domingos, quando o ambiente abria ao público.

Então cresci ouvindo músicas de excelente qualidade, e isso nunca nos tirou o sono. Aliás, eu até dormia melhor quando qualquer desses ambientes estava funcionando.

Na Boate Sândalus, no período em que Dedeca Jales estava à sua frente, algumas festas-bailes aconteceram. Sem idade para frequentar esses ambientes, e dada a rigidez de mamãe, a catequista Maria José de Souza (ou Maria do Junco), eu apenas me contentava em ouvir nas tardes, que antecediam a cada noite de cada festa, o ajuste do som das bandas, a famosa passagem de som.

À noite, quando a banda começava a tocar, eu me deliciava, naquela rede surrada, com os acordes daquela música feita ao vivo, executada totalmente na hora, sem “playback”.

Já adolescente, na segunda metade dos anos oitenta em diante, eu podia frequentar, vez por outra, os bailes que se realizavam na Boate Skorpius, que passou a ser na época a principal casa de eventos do gênero em Messias Targino.

Na cidade pequena, o alvoroço começava quando a banda chegava. Era grande a curiosidade de muitos para ouvir (e se possível presenciar) a passagem do som. Durante a festa, ou o baile, eu não era o único que dedicava pelo menos vinte ou trinta minutos para ficar bem em frente à banda, contemplando a execução das músicas que eram sucesso na época.

Quando a cidade recebia uma banda de maior expressão na região ou no Estado, a nossa curiosidade aumentava ainda mais. Conseguir o valor do ingresso e uns trocados a mais para molhar a garganta e causar leves danos ao fígado era a missão do dia, afinal, a noite prometia, a festa iria ser boa, e finalmente aquele mês seria diferente para todos nós.

Nomes como Montagem (de Natal), Terríveis (de Natal), Impacto Cinco (de Natal), Elo Musical (de Mossoró), Trepidant´s (de Recife), Circuito Musical (de Caicó), Tártaros (de Currais Novos), Bárbaros (de Mossoró), dentre outros, eram, para nós, atrações musicais de excelência. Grafith, então, causou enorme alvoroço quando foi se apresentar pela primeira vez a Messias Targino, num período em que a banda ainda tocava o estilo baile e ainda tocava totalmente ao vivo.

Uma vez por ano, ficávamos à espera da festa de “A Mais Bela Voz”, um concurso de música promovido pela Rádio Rural de Mossoró e pela Rádio Rural de Caicó em dezenas de cidades do interior do Rio Grande do Norte. Os ensaios eliminatórios ocorriam à tarde, ocasião em que os candidatos e a banda tentavam se ajustar. Uns poucos desafinados já eram eliminados ali mesmo. Os demais iriam se apresentar à noite. Do ensaio em diante, o povo já escolhia os seus favoritos e já palpitava sobre o possível ganhador do concurso, que iria representar Messias Targino na grande final do certame, ocorrida em Mossoró (se a promoção do evento fosse da Rádio Rural mossoroense) ou em Caicó (se o evento fosse realizado pela Rádio Rural caicoense).

A boa seresta também fez parte das nossas vidas. Não existe cidade pequena que, num passado recente, não tenha sido palco de seresteiros, famosos ou não. Em Messias Targino, o filho da terra Zé Galego (conhecido em Mossoró como J. Jales) certamente foi o que mais se apresentou em noites de serestas. Mas tivemos vários outros, inclusive o fenômeno regional da época, Maguila, que se autodenominou de “O Mago dos Teclados”.

Getúlio Oliveira Lima (de saudosa memória), Alísson Araújo, Francisco Eudes, Marquessoel Bezerra Pinto (que anos à frente se tornaria meu compadre), Robson Pinto (também compadre anos depois), Genésio Francisco Pinto Neto (“Pola de Edite de Nejo”), Ronielly Almeida e tantos outros compunham uma turma que gostava dos bailes. Selávamos amizades sinceras, e juntos, todos ou em parte, gostávamos daquelas noites em que a pacata cidade se transformava num palco de festa.

Quando fomos admitidos a frequentar as confrarias de outra geração, passamos a usufruir da excelente música cantada ao som de violões dedilhados com maestria, ou os teclados inesquecíveis de Benedito Alves de Medeiros, o popular Bené da Prefeitura. Reginaldo José de Melo (Régis de Zé Pedro), Nonato Almeida, De Assis Almeida, o próprio Bené, Almeida (contador), Zé Martins e tantos outros costumavam cantar nessas confrarias informais, e de tudo se ouvia um pouco (do melhor da música brasileira).  Cresci ouvindo esse pessoal.

Nessa época, o único “excesso” que cometíamos era ingerir bebida alcoólica. Éramos felizes com muito pouco (ou quase nada), e crescíamos levados pelo som das músicas que embalaram nossos dias e noites de fins de semana, no Bar Chapéu da Bruxa, na Boite Sândalus, no Recantus Bar, na Boate Skorpius, e em outros poucos outros ambientes comerciais existentes nessa cidadela, onde todos se conheciam pelos nomes, apelidos e até pelo gosto musical.

De lá para cá, mudaram-se os estilos musicais mais tocados, puseram fim aos bailes, muitas das bandas-bailes desapareceram e umas poucas continuam sobrevivendo à base da insistência, e o técnico da mesa de som é quem na verdade anda fazendo as apresentações, pois quase todas as bandas usam o dissimulado arquivo de áudio do tipo VS (virtual studios ou estúdio virtual).

De lá para cá, alguns amigos também partiram para o plano espiritual, e a cidade já está razoavelmente modificada em sua rotina e em seus costumes, e, graças a Deus, está significativamente mudada para melhor.

De resto, ficaram daquele tempo a saudade e as boas e verdadeiras amizades, as quais a borracha do tempo não consegue apagar, pois foram escritas com a tinta da caneta que carrega os valores de respeito, solidariedade, sinceridade e fraternidade.

Alcimar Antônio de Souza

Advogado e Membro da Associação dos Poetas e Artistas do Junco - APAJ