A tristeza da partida
Nesses dias
minha prima Neide Santos, de Jaçanã, enviou-me via Correios uma carta datada de
5 de abril de 1975, quando eu tinha três anos de idade. Ela encontrou a missiva
em meio a documentos da sua mãe. A carta foi remetida por minha mãe, Maria José
de Souza, para uma de suas cunhadas, a minha tia Mercês. A minha mãe havia
voltado de Jaçanã, aonde tinha ido com meu pai, José Antônio Filho, visitar a
minha família paterna. A carta foi postada na agência postal de Patu, onde ela morava
com meu pai.
Num dos
parágrafos da carta, minha mãe dizia a tia Mercês: “Filho manda um abraço para
vocês todos e lembrança”. Filho era o nome de guerra de meu pai na Polícia
Militar, corporação à qual ele serviu. Em Jaçanã, era chamado de Zezinho, filho
de José Antônio de Oliveira, ou José Polucena, meu avô paterno.
Mais adiante, na
mesma carta, minha mãe escreveu: “Alcimar fala muito em Gracinha e nas meninas
daí, Aparecida, D. Sebastiana, vovô [...]”.
Um ou dois anos
à frente da data da carta, a minha mãe e o meu pai se separaram, quando já
morávamos em Natal, para onde havíamos ido muito provavelmente em razão do
ofício de policial militar do soldado Filho, meu pai.
Mas aquela
viagem de minha mãe a Jaçanã não foi a última. Fizemos outras. A cada dois ou
três anos, a minha mãe, depois de meses de economia, levava-me àquela cidade
para eu encontrar meu pai e a família. Em Patu, embarcávamos num velho ônibus da
empresa Jardinense, que saía cortando o sertão do Rio Grande do Norte e de
parte da Paraíba, cruzando todo o Seridó, até chegar a Santa Cruz, na região do
Trairi, de onde éramos levados por outro ônibus da Jardinense para Jaçanã. Passei
a infância e a adolescência com aquela imagem da subida da serra, passando por
Coronel Ezequiel até chegarmos ao destino desejado.
Em Jaçanã,
dividíamos o tempo entre as casas de meus tios e tias, primos e primas e,
enquanto ela viveu, na casa da minha avó Sebastiana. Ali eu sempre fui o filho
de Zezinho, neto de José Polucena, de feição física tão assemelhada que às
vezes fui assim reconhecido por quem somente ouviu falar que o filho de Zezinho
havia chegado.
Na maioria das
vezes, saíamos da parada do ônibus, em Jaçanã, direto para a Vila Nossa Senhora
de Fátima, no Centro, aonde chegávamos à casa de tia Mercês e tio Zé dos
Santos. Biologicamente, este não era meu tio, mas afetivamente ele sempre se
comportou como se fosse, e as normas rígidas da minha mãe Maria do Junco também
me ensinaram a tratá-lo como tio. E assim aconteceu durante toda a vida.
Tia Mercês
sempre foi uma referência na minha vida. Era exemplo de bondade, ternura, amor,
compreensão, acolhimento. Ninguém conseguia ficar triste ao lado dela, pois
ela representava a alegria. Tinha problemas, como todos nós temos, no entanto
ela nunca nos deixou transparecer que os tivesse.
Ao lado de tio
Zé dos Santos, tia Mercês formou uma família linda, de muitos filhos, filhas,
netos, netas e bisnetos. Os dois, pessoas tementes a Deus, cristãos em
essência, educaram os filhos no caminho do que é justo, correto, digno, no rumo
daquilo que é esperado para cada homem e mulher de bem. Os demais descendentes
(netos e netas) adotaram também essa conduta.
Em Jaçanã, eu e
minha mãe passávamos entre trinta ou quarenta dias, naquelas que sempre foram
as viagens de férias mais esperadas por mim. Jaçanã é um chão onde sempre me
senti acolhido. É a terra de uma gente que sempre me tratou com carinho, zelo,
cuidado e muito amor.
De tia Mercês, a
cena que mais me marcava era quando ela pegava em minhas bochechas, e, num
gesto de carinho, sempre dizia que eu era um bochechudo bonito. Se eu era ou
não, eu acreditava, pois tia verdadeira não mente, e uma das mais visíveis
qualidades de minha tia era justamente falar a verdade.
Posso dizer que
cresci e me tornei adolescente tendo Jaçanã como segunda casa, e tendo tia
Mercês e a família de meu pai como uma referência de amor.
A cada véspera
de se completar o período de estadia em Jaçanã, próximo da partida, eu ia
dormir com uma tristeza sem fim. Uma ou outra vez fui pego chorando à noite
(afora as vezes que ninguém viu), sabendo que o ônibus para Santa Cruz sairia
nas primeiras horas da manhã e eu teria que esperar mais uns dois ou três anos
para voltar ao lugar.
No entanto, a
vida nos leva a caminhos incertos e muitas vezes nos impõe distâncias físicas
que nos afastam de pessoas e lugares que amamos. Parece um ciclo natural na
vida de muita gente. E isso aconteceu comigo. Por circunstâncias diversas,
fiquei longe de Jaçanã e da minha gente por cerca de vinte anos, tempo somente
quebrado quando encontrei as primas Neide e Graça em Alexandria e em Patu,
quando ambas atravessaram o Trairi e o Seridó para virem ao Oeste potiguar, para
cuidar de problema de saúde.
Em maio de 2019,
o que me parecia ser um compromisso profissional a resolver na Comarca de Santa
Cruz, tornou-se para mim, também, um motivo para voltar a Jaçanã. Desta vez eu
já não tinha a minha mãe para me acompanhar, pois ela havia morrido há alguns
anos, depois de longo tratamento de câncer e mal de Alzheimer. Fui com minha
esposa Elizângela, minha filha Maria Rita e o amigo Juninho.
Novamente senti
a alegria de subir a serra que se inicia a partir de Santa Cruz. Novamente
senti a felicidade de encontrar meus parentes, descendentes, como eu, da união
entre a minha avó Sebastiana e o meu avô José Antônio de Oliveira.
Já não vi meu
tio Zé dos Santos, que a essa altura já fazia morada ao lado de Deus, o que
acredito porque, por sua vivência na terra, de retidão de caráter, amor à
família e disposição permanente de ajudar ao próximo, imagino que tenha sido
esse o seu destino após deixar esse mundo.
A minha tia
Mercês estava em Natal, dando continuidade a um doloroso tratamento de câncer.
Parecia vencê-lo, com apego indiscutível à sua fé em Deus e graças aos cuidados
da medicina.
Depois de dois
dias de minha chegada a Jaçanã, a minha tia Mercês chegou de Natal. Foi quando
a minha prima Neide, que me acolhia em sua casa como se fosse a própria tia
Mercês, chamou-me e disse-me: “Mãe está com ciúme porque você está aqui e disse
que hoje você vai dormir na casa dela”.
Sabíamos, eu e
Neide, que a saúde de tia Mercês já não era a mesma de tempos atrás.
Particularmente eu não queria lhe dar qualquer trabalho, pois eu sei como ela
gostava de nos receber, e isso demandava algum esforço físico. Porém eu também
tinha aquela vontade de ir à casa dela, que de há muito tempo já não era na
Vila de outrora.
Fomos (eu, a
família e Juninho) para a casa de tia Mercês, e finalmente pude voltar a sentir
o aconchego do seu lar, a ternura do seu tratamento e a irradiação da sua
alegria. Conversamos até tarde da noite, como se quiséssemos recuperar um tempo
de duas décadas de falta de conversa presencial.
Apesar dos anos,
novamente ela me presenteou com o carinho de quando eu era criança: estando somente
nós dois, ela pegou as minhas bochechas e mais uma vez me disse que eu era um
bochechudo bonito. Esse gesto simples, feito com a espontaneidade de uma tia
como ela, é sinal de amor que não se mede; diz muito do que ela sentia por mim.
Na manhã seguinte,
novamente me veio a tristeza da partida. Todavia, agora eu havia prometido a mim mesmo, a ela e
aos primos que não passaria mais tanto tempo sem voltar.
Depois da viagem
de 2019, a modernidade da tecnologia nos permitiu manter contatos frequentes,
inclusive com tia Mercês, que dizia ter dificuldade para operar o aplicativo de
whatsapp mas era uma craque no uso do
tablet. E vez por outra
conversávamos, fosse por chamada de vídeo, fosse por ligação do whatsapp, fosse por ligação convencional
mesmo. Geralmente Neide “intermediava” esses contatos.
Mas o tempo foi
passando e tia Mercês foi tendo complicações diferentes no seu estado de saúde.
De repente o alimento ingerido já não se segurava em seu intestino, e ela foi
fazer nova cirurgia. Ficou com medo de se alimentar, e as forças físicas lhe
foram sumindo. Depois de tantos exames, consultas e muitas tentativas frustradas
de recuperação do vigor físico, foi levada a um hospital localizado em Currais
Novos, para a colocação de uma sonda, que lhe permitiria uma ingestão de
alimentos mais regular.
Neide, Arlani,
Gilberto, Edjânia, Graça, todos me colocavam a par da situação.
Neste dia 23 de
julho, Neide me telefonou muito triste e angustiada. Disse que um médico
informou à família que provavelmente um problema mais sério poderia ser
constatado em novo exame. Seria na cabeça, e, pela idade, tia Mercês já não
suportaria mais um doloroso tratamento de saúde. Conversamos por mais de quinze
minutos.
Nesta
sexta-feira, 24 de julho, quando a família ainda chorava a morte de tio Zé dos
Santos, que havia completado dois anos há poucos dias, veio a triste notícia da
morte de tia Mercês, que ocorreu cedo, nas primeiras horas da manhã,
praticamente nos mesmos horários em que eu costumava me despedir dela quando
estava para voltar das férias em Jaçanã.
Mesmo tomados
pela dor, Neide, Gilberto e Arlani me deram a notícia. E então o azul do céu
que aparecia em mais um amanhecer, para mim se tornou cinzento, triste. Nessas
horas, a gente costuma não querer acreditar que o fato é verdade, por mais que
saibamos que essa é a realidade posta.
Pelos efeitos
nocivos da pandemia causada pelo novo coronavírus, que nos impõe cuidados
pessoais e com quem amamos, não pude ir a Jaçanã. À distância, também não tive
coragem de telefonar para a família, ainda. Nessas horas, palavras não dizem
muito. Um simples abraço tem maior significado. E essa impossibilidade de
abraçar dói bastante. Mas vou me guardar para esse abraço presencial adiante,
quando passar todo esse mal sanitário que recai sobre o mundo nesse instante.
Por ora, quero
apenas dizer a Neide, Gorete, Graça, Edjânia, Roberto, Gilberto, Tiago, Arlani
e aos demais da família de tia Mercês e tio Zé dos Santos que eu sempre amei
muito os meus tios, por mais que a distância às vezes queira dizer o contrário.
E também amo imensamente meus primos e primas, juntos dos quais não pude estar
presencialmente neste dia triste, muito embora todos tenham estado em meu
pensamento. Com a idade chegando, a gente aprende a valorizar mais a família,
porque ela é obra de Deus e nos completa e nos faz bem.
Estamos todos
tristes pela morte de tia Mercês. Não gostamos de perder nessa vida as pessoas
que mais amamos. Mas, quando são pessoas boas, parece que Deus também as quer
mais cedo junto de si, dentro de desígnios que não compreendemos.
Como cristãos,
se analisarmos o real significado da morte terrena, concluiremos facilmente que
tia Mercês não morreu; não para Cristo Jesus. Sua excelente obra nessa vida, de
ser temente a Deus e só fazer o bem, assim também criando e educando seus
descendentes, traz-nos a certeza de que tia Mercês terá no Reino dos Céus o
lugar destinado às pessoas justas, corretas, de coração verdadeiramente
cristão.
Nesta
sexta-feira, 24 de julho, chorei por mais uma partida minha da presença de tia
Mercês. E chorei mais do que quando eu me preparava para voltar de Jaçanã. Sei
que filhos, netos e bisnetos sentem mais, pois estavam no seu convívio. Nenhuma
culpa, porém, carregarão, pois sabemos que nada que estava ao alcance da
família deixou de ser feito na tentativa de lhe restaurar a saúde.
E nos
alegraremos todos sempre que imaginarmos que tia Mercês viveu tudo o que quis
viver, sendo imensamente feliz ao lado da sua família.
Vou finalizar
com um resumo que me foi feito pela prima Arlani, que encontrou serenidade no
momento de me dar a triste notícia: “Primo, o que vovó tinha que lutar, vovó
lutou, só que Deus entendeu que a missão dela já foi cumprida e levou ela pra Ele.
Descansou”.
Descanse em paz,
minha tia!
Alcimar Antônio
de Souza
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