Escracho
Por
Eleonora de Lucena
A elite brasileira está dando um tiro no pé. Embarca na canoa do
retrocesso social, dá as mãos a grupos fossilizados de oligarquias regionais,
submete-se a interesses externos, abandona qualquer esboço de projeto para o
país.
Não é a primeira vez. No século 19, ficou atolada na escravidão, adiando
avanços. No século 20, tentou uma contrarrevolução, em 1932, para deter Getúlio
Vargas. Derrotada, percebeu mais tarde que havia ganho com as políticas
nacionais que impulsionaram a industrialização.
Mesmo assim, articulou golpes. Embalada pela Guerra Fria, aliou-se a
estrangeiros, parcelas de militares e a uma classe média mergulhada no
obscurantismo. Curtiu o desenvolvimentismo dos militares. Depois, quando o
modelo ruiu, entendeu que democracia e inclusão social geram lucros.
Em vários momentos, conseguiu vislumbrar as vantagens de atuar num país
com dinamismo e mercado interno vigoroso. Roberto Simonsen foi o expoente de
uma era em que a Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) não se
apequenava.
Os últimos anos de crescimento e ascensão social mostraram ser possível
ganhar quando os pobres entram em cena e o país flerta com o desenvolvimento.
Foram tempos de grande rentabilidade. A política de juros altos, excrescência
mundial, manteve as benesses do rentismo.
Quando, em 2012, foi feito um ensaio tímido para mexer nisso, houve
gritaria. O grupo dos beneficiários da bolsa juros partiu para o ataque. O
Planalto recuou e se rendeu à lógica do mercado financeiro.
Foi a senha para os defensores do neoliberalismo, aqui e lá fora,
reorganizarem forças para preparar a reocupação do território. Encontraram a
esquerda dividida, acomodada e na defensiva por causa dos escândalos. Apesar
disso, a direita perdeu de novo no voto.
Conseguiu, todavia, atrair o centro, catalisando o medo que a recessão
espalhou pela sociedade. Quando a maré virou, pelos erros do governo e pela
persistência de oito anos da crise capitalista, os empresários pularam do barco
governista, que os acolhera com subsídios, incentivos, desonerações. Os que
poderiam ficar foram alvos da sanha curitibana. Acuada, nenhuma voz burguesa
defendeu o governo.
O impeachment trouxe a galope e sem filtro a velha pauta
ultraconservadora e entreguista, perseguida nos anos FHC e derrotada nas últimas
quatro eleições. Privatizações, cortes profundos em educação e saúde, desmanche
de conquistas trabalhistas, ataque a direitos.
O objetivo é elevar a extração de mais valia, esmagar os pobres,
derrubar empresas nacionais, extinguir ideias de independência. Em suma,
transferir riqueza da sociedade para poucos, numa regressão fulminante.
Previdência, Petrobras, SUS, tudo é implodido com a conversa de que não há
dinheiro. Para os juros, contudo, sempre há.
Com instituições esfarrapadas, o Brasil está à beira do abismo. O
empresariado parece não perceber que a destruição do país é prejudicial a ele
mesmo. Sem líderes, deixa-se levar pela miragem da lógica mundial financista e
imediatista, que detesta a democracia.
Amargando uma derrota histórica, a esquerda precisa se reinventar,
superar divisões, construir um projeto nacional e encontrar liderança à altura
do momento.
A novidade vem da energia das ruas, das ocupações, dos gritos de
"Fora, Temer!". Não vai ser um passeio a retirada de direitos e de
perspectiva de futuro. Milhões saborearam um naco de vida melhor. Nem a
"teologia da prosperidade" talvez segure o rojão. A velha luta de
classes está escrachada nas esquinas.
ELEONORA
DE LUCENA, 58, jornalista, é repórter especial da Folha. Editora-executiva do
jornal de 2000 a 2010, escreve livro sobre Carlos Lamarca
Fonte: www.conversaafiada.com.br
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