Que safadeza!
No mês de junho o
Nordeste acende suas fogueiras, saúda os santos Antônio, João Batista e Pedro,
e transforma-se num grande arraial, que tem – ou tinha, até pouco tempo – como
carro-chefe o autêntico ritmo musical nordestino, representado pelo forró, pelo
xote e pelo baião.
Dentre as maiores
festas de junho, o São João de Caruaru, em Pernambuco, e o São João de Campina
Grande, na Paraíba, disputam há décadas o título de Maior São João do Mundo.
Por essas bandas das
terras potiguares, o Mossoró Cidade Junina, da segunda maior cidade do Estado,
e o São João de Assu, considerado o mais antigo do Nordeste, são também festas
grandiosas, que reúnem multidões.
Porém, nesse ano de
2016, o evento que mais chama a atenção é o São João de Caruaru, no agreste
pernambucano. A polêmica gira em torno da contratação do cantor Wesley Safadão,
que, sem cantar forró, foi contratado pela Prefeitura de Caruaru para
apresentação na noite de sábado (25 de junho) pelo cachê de R$ 575.000,00
(quinhentos e setenta e cinco mil reais), ou seja, por mais de meio milhão de
reais.
Respeitando aqueles que
não querem discutir o quesito estilo musical, em que se verifica que Wesley
Safadão nada tem de ritmo nordestino autêntico, então vamos discutir apenas os
aspectos legais, morais e sociais da contratação.
Na Constituição
Federal, o direito ao lazer é tratado no mesmo dispositivo em que também se
garante outros direitos sociais importantes, coma educação, saúde, trabalho,
moradia e outros.
É o que se vê da
redação do artigo 6º da Lei Maior, assim vazado: “São direitos sociais a
educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer,
a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a
assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.
Na cabeça do artigo
215, a mesma Constituição da República preceitua que: “O Estado garantirá a
todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura
nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações
culturais”.
Interessa sublinhar que
esse dispositivo está inserido no mesmo Título VIII da Carta Magna, que trata
da Ordem Social, onde também estão previstos os direitos à seguridade social
(Capítulo II, com distinção entre saúde, previdência social e assistência
social), à educação e ao desporto (Capítulo III).
Tudo isso significa
dizer que a Administração Pública não só pode como também deve realizar eventos
que garantam ao povo lazer e promoção ou manutenção das tradições culturais.
Porém, é nesse ponto que
o aspecto legal do tema se choca justamente com o quesito estilo musical, pois
não se pode entender como promoção ou manutenção da cultura do povo nordestino,
principalmente durante o período dos festejos juninos, um estilo musical que
não seja forró, xote ou baião, e que nada tenha de conteúdo relevante ligado às
nossas tradições, mas, do contrário, é um incentivo ao consumo desenfreado do
álcool, repetidamente estimula farras intermináveis e tem
na sua execução o acompanhamento de danças visivelmente pornográficas.
Hoje em dia, levamos
nossas famílias, com crianças e adolescentes, para a praça dos festejos juninos
– como se fazia desde sempre – e temos que ficar assistindo a um cantor ficar
perguntando entre uma música e outra, quando não pergunta na própria letra da
música: “Tem corno aí?”, “Tem raparigueiro aí?”, “Tem cabra desmantelado aí?”,
apenas para relatar os termos mais suaves dessas apresentações.
E, em pleno São João,
quase não se ouve o som inimitável e único da sanfona, o símbolo maior de nossa
essência cultural sertaneja.
Então, quando se paga
575 mil reais a Wesley Safadão para uma apresentação em pleno São João
promovido pelo Poder Público, não se está garantindo a ninguém a promoção das
manifestações culturais do povo nordestino. Elas são outras.
Sob análise das
condições morais e sociais, não se pode entender como correto o pagamento de
mais de meio milhão de reais a apenas um artista – independentemente de quem
seja – por uma Prefeitura de um Município nordestino, num momento em que tanto
se fala de crise financeira, de retração na economia, de caos na saúde pública,
de falta de segurança para os cidadãos... Ou Caruaru não está inserida nesse
cenário de dificuldades?
Com 575 mil reais,
contrata-se uma multidão de artistas e bandas para apresentações num São João,
sendo certamente o valor global para pagamento de todos esses artistas e
bandas.
Com 575 mil reais,
muito pode ser feito pela saúde, pela educação, por melhorias urbanas, pela
segurança pública.
O Poder Público não
pode nem deve deixar de realizar eventos de lazer e de promoção às
manifestações culturais do povo, mas não pode pagar cifras absurdas por certos
cachês de artistas, principalmente num Município do Nordeste, onde as
dificuldades são sempre maiores.
Foi por tudo isso que
três advogados pernambucanos ingressaram com uma Ação Popular para que o
Município de Caruaru fosse impedido de pagar 575 mil reais por uma única apresentação
de Wesley Safadão. O feito foi distribuído à Primeira Vara da Fazenda Pública
da Comarca de Caruaru, que de pronto concedeu a liminar postulada e mandou suspender
a realização da aludida apresentação.
No entanto, o Município
recorreu da decisão e ela foi reformada, permitindo o Poder Judiciário
pernambucano que a apresentação de Safadão fosse realizada e que fosse paga a
quantia gigantesca de 575 mil reais.
Enquanto isso, nomes
consagrados da cultura musical nordestina, de cachês bem mais modestos, ficaram
de fora do São João de Caruaru. O forrozeiro Alcymar Monteiro, por exemplo, há três
anos não é convidado para se apresentar no evento, no qual esteve presente por
vários anos seguidos.
No Pátio de Eventos
Luiz Gonzaga, em Caruaru, as tradições da música nordestina deveriam ser
mantidas, porém jamais deixadas de lado. Nesse momento, com atitudes como essa,
repetida noutros eventos públicos do mês de junho, o que se faz às tradições
nordestinas e aos combalidos cofres do Poder Público é uma grande safadeza.
Alcimar Antônio de Souza
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